segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Fases

                                                  Para Cristina Sales

 Eis a menina... os cabelos dourados,

o sorriso maroto que se esconde,

que se esgueira por trás dos moirões,

dos troncos sinuosos de árvores estradeiras

só pra ver a vida que corre solta e livre,

tão livre quanto a menina deseja ser.

 

Mas nasceu fêmea e isso é pecado mortal!

no dizer dos antigos que teimam em

criar altares para as mulheres

e, para os homens, bridão nenhum.


Mas ela, atrevida, se esgueira silenciosa

a ouvir a conversa dos peões,

sem sensuras, sem composturas, sem peias.

Inútil atrelar arreios em potranca arredia

que se aproxima devagarinho, mas foge arisca

num galope provocante e encantador...

 

E a menina em mulher se fez,

e conquistou a independência, a relativa liberdade,

e conheceu o prazer e a dor.

Entretanto, apesar de guerreira impetuosa e forte,

não conseguiu impedir que a morte lhe

roubasse os afetos mais caros ao coração.

 

Hoje, ainda faz manha, ainda bate o pé e fala alto

quando pensa que tem razão,

mas sabe ser doce, sabe acolher

porque gosta de ter ao redor de si,

muita gente, muita gente... e assim,

ouvir o ritmo dos corações que em compassos diferentes

terminam por compor a melodia romântica, que ela,

sonha um dia inspirar, porque - ainda que não saiba -,

musa é o que a vida inteira, desejou ser.

 

                               

                                 

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Elos



Fomos chegando aos poucos, quais elos pequeninos 

- alguns mais frágeis, outros nem tanto –

formando uma imensa e mágica corrente familiar,

estrelinhas da grande constelação,

atendendo ao chamado de corações na Terra:

*Neuza, Denilson, Creuza;

*Cinésio, Dilma, Valéria;

*Selma, Silma, Portugal, Kleber;

*Cristina, Cláudia, Marta, José Joaquim, Ana Valéria, Maria Luiza.

*Márcia, Luiz Augusto, Eliane, José Joaquim;

*Belinha, Heloisa, Jorge Luiz, Edna;

*Evaldo, Eraldo;

*Benedita (Ditinha), Solange;

Sandra, Ricardo e eu;

Integrantes de uma ciranda em flor,

cujos pólens eram transportados

carinhosamente, de quando em quando,

a uma colmeia deveras especial:

a casa de vovó Dita e vovô Joaquim,

que embora de volta à Pátria Espiritual,

nunca se foram de nós, jamais morreriam,

porque se fizeram guardiães desse grupo composto de:

S audade

A morosidade

 L iberdade de ser

 E sperança

 S olidariedade.

                                 Gratidão, Senhor!

 

 

domingo, 29 de agosto de 2021

Caminhos

 

                                                                     Para Selma Sales

Eu e o outro:
conflitos
dúvidas
segredos
sussurros
gritos
medos
incertezas.

Eu e a natureza:
silêncio
choro
mergulho em apneia
nas profundezas de mim
caminho em sentido contrário:
parto, gestação, concepção
sintonia perfeita entre
sentimento e razão.
Eu sou. A Natureza é.                                                                                         
Eu e Deus:
introspecção
renascimento
retorno ao ponto de partida
vida a
despir-me de verdades
para vestir-me de poesia.



quarta-feira, 21 de abril de 2021

Mãos dadas

O tempo, esse artista incansável, já lhes tecera no rosto as rendas de costume, já lhes embranquecera os cabelos e lhes emprestara uma certa lentidão no caminhar, mas não conseguira tirar deles o hábito antigo das mãos dadas onde quer que estivessem: na igreja, no cinema, na varanda de casa, nas ruas da cidadezinha, como se afirmassem naquele gesto uma terna cumplicidade.

Até mesmo na antiga e tão elegante namoradeira para acompanharem a novela pelo rádio, as mãos se encontravam num idílio tão bonito...

Era assim o velho casal a quem as crianças, mesmo sem parentesco algum, lhes pediam a bênção.

Era também um tempo diferente, com serenatas pela noite, lua mansa no terreiro, muita conversa boa, recitais de poesia, brincadeiras de roda, banda de música no coreto da praça, fotos do lambe-lambe, carrocinha de algodão doce...

E nem era preciso ter festa. Bastava ser domingo.

Parece que nunca existiu um tempo assim, nem costumes tão singelos, mas eu que aqui estou ainda, estive lá, morei naquela cidade, e guardei no coração tanta lembrança boa que não poderia deixar de falar sobre isso, porque a mim me parece, que nos dias atuais é muito fora de moda, ou brega -se preferirem- demonstrar-se ternura e falar-se de coisas simples, como se tivéssemos a obrigação de nos tornarmos enciclopédias ambulantes.

 

terça-feira, 6 de abril de 2021

A visita

  O silêncio da madrugada foi quebrado por algumas suaves pancadinhas à porta.

Entre o temor e a curiosidade, venceu a segunda e ao abrir a porta fiquei sem saber o que fazer ou o que dizer.

Diante de mim, em pé, estava uma cópia de mim mesma!

Embora habituada à minha figura diante do espelho, senti uma estranheza ao me ver numa outra projeção, uma espécie de 3D, algo deveras surreal para mim, embora fora acostumada a ver e ouvir fatos e relatos em situações diversas e bem diferentes do comum.

Deveria convidá-la (ou convidar-me) a entrar?

Venceu a educação e num gesto cortês e uma voz que não me vinha da garganta eu a fiz (ou me fiz) entrar.

Não sabia o que dizer.

Estranho esse sentimento de ver-nos a nós mesmos e nos sentirmos tão pouco à vontade...

Deveria oferecer um café ou quem sabe fazer uma prece?

A visitante por sua vez, nada dizia, apenas me acompanhava nos mínimos gestos com um olhar indefinível.

Sempre lera bastante sobre o Eu superior o eu comum, mas seria aquele o meu Eu superior exteriorizado?

Descansei suavemente minha mão sobre a sua e simplesmente disse num suspiro: Desculpe-me a falta de jeito, mas você sou eu e não sei como acolher a mim mesma.

Talvez resida nisso os problemas conflitantes entre nós, simples mortais, o fato de não termos aprendido a acolher a nós mesmos, vermos as nossas imperfeições como algo natural nesse processo de aprendizagem, que é viver.

Quantas vezes fomos punidos por errarmos, quando o erro é parte integrante do acerto...

Por que nossos educadores deram a fatos tão simples uma complexidade tal que o medo nos calou a voz que deveria sair da garganta e ganhar todos os espaços?

Nossos olhos marejados e as mãos trêmulas, entrelaçadas com tanta ternura, desculpavam-se ao entendermos finalmente, que não precisávamos mais buscar tantos argumentos ou justificativas porque finalmente compreendemos o valor grandioso do eu em suas dimensões e suas relações com o outro, com Deus, porque o outro sou eu e ambos estamos no mesmo Deus que há em nós.

segunda-feira, 8 de março de 2021

Eu e as palavras


                               

 Sempre me relacionei bem com as palavras e sempre houve uma grande camaradagem entre a gente.

Uma espécie de acordo, de chave de casa, de idas e vindas sem cobranças.

As vezes, quando o sono se perdia não se sabe exatamente onde, elas chegavam para me fazer companhia e teciam histórias das mais variadas, convidavam personagens diversos, ora engraçados, ora tristonhos, ora musicais, ora poéticos.

E minha função na madrugada era passar um café com alguma mistura, como se diz no interior, e ouvir toda aquela prosa boa, que, a pedido das palavras mesmo, eram anotadas por mim.

Leia para nós, elas me pediam, se fazendo de platéia a rir ou chorar comigo até que o regresso inesperado de sono  interrompesse a nossa reunião.

Hoje as palavras não aparecem com a mesma frequência de antes ou chegam para uma visita de médico, alegando falta de tempo para ficarem até mesmo para um café...

De vez em quando sinto vontade de sair a procurá-las, mas prevalece a velha mania de respeitar a vontade alheia e permaneço onde estou.

Mas sinto saudade, confesso.

Aliás, saudade nunca se foi. É uma velha amiga que acabou tornando-se uma dedicada cuidadora, principalmente quando percebe que insisto em repetir que guardei alguma palavra, mas não sei exatamente onde...

Saudade é muito generosa. Aliás, ela me faz acreditar que minha memória pode até dar alguns probleminhas, mas no que depender dela, jamais se apagará.

Então, eu apóio a cabeça em seu ombro e divido com ela a minha queixa:

Embora a tecnologia seja incrível, ela jamais substituirá a presença dos nossos amores, nem mesmo das palavras que insistem em se afastar de nós, sabia?

Mas eu estou aqui, diz ela num sorriso complacente.

Então começamos a nos lembrar de tanta coisa, de um jeito tão descontraído, que nos demoramos em abrir a porta aos toques insistentes... Eolha que surpresa boa! Não é que todas as palavras ausentes voltaram querendo saber porque nós duas tanto ríamos.

Acho que descobri que quem afugenta as palavras de nós são o mau humor e a queixa.

Mas vamos combinar que esses dois são capazes de mandar embora até os amigos mais generosos, não?

quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

O irmão

 

- Por que as lágrimas, Florisbela?

- Não tenho sorte no amor, madrinha. Cupido sempre acerta o alvo errado. Para os outros tudo dá certo, mas pra mim...

- Pois vou te contar uma história sobre Cupido que quase ninguém sabe.

Ele tinha um irmão gêmeo, Odipuc, que nunca foi mostrado ao mundo, porque nasceu com um problema ocular deveras complicado.

Bem, como os deuses e deusas, fadas e magos nunca usaram óculos – aliás, naquela época nem existia -, o gêmeo ficou recluso nas dependências do palácio de Afrodite, para que o mundo não conhecesse aquele fato.

Acontece que, em se tratando de deuses, é praticamente impossível mantê-los presos por muito tempo, onde quer que estejam. E de quando em quando, Odipuc, com muita cautela, para não despertar a ira de sua mãe, sai pelo espaço treinando seu arco e flecha.

Porém, como até hoje seu desvio ocular não foi resolvido, ele sempre acaba errando o alvo e fazendo os corações femininos ficarem assim, cheio de curativos, como o seu.

- Mas como você sabe disso, madrinha?

- Eu também fui flechada pelo irmão de Cupido, minha flor.

- E será que ninguém pode fazer nada para mudar isso?

- É comum os deuses ajudarem os mortais na resolução de seus problemas, Florisbela, mas o contrário eu acho impossível!

- E se a gente...

E Florisbela, munida de papel, réguas e uma infinidade de lápis, como toda boa arquiteta, traça um plano tão mirabolante para ajudar o irmão de Cupido, que madrinha não sabia se ria ou chorava condoída daquele coraçãozinho que ela tanto amava e só desejava vê-lo feliz.