quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

O relógio do galo



                                                   


O galo vinha muito triste e preocupado pelo caminho porque perdera algo de muito valor: o seu relógio.
E agora, o que fazer? O relógio o avisava a hora certinha de cantar para chamar as pessoas ao trabalho e à escola...
E o galo já quase chorava quando...

Muito devagarzinho, sem qualquer tipo de tormento na vida, vem chegando a tartaruga que o saúda alegremente.

- Olá, amigo galo! Tudo bem?
- Olá, amiga tartaruga. Ah, tudo mais ou menos.
- Posso ajudar?
 - Eu perdi meu relógio. É uma joia de família, passa de pai pra filho, sabe? E sem ele como vou acordar as pessoas? Esse é o meu trabalho.
- Você tem razão, amigo, mas logo, logo vai encontrá-lo, acredite.
- Como você sabe?
- Porque os sábios ensinam que “tudo que é nosso, um dia volta para nós.” Quer que eu o ajude a procurar?
- Oh, sim! Obrigado. Vamos procurar juntos, então. Eu sigo pela direita e você, pela esquerda e depois nos encontramos aqui mesmo, certo?
- Certo. Ah, e como é o seu relógio?
- Boa pergunta. Ele se parece com o sol.
- Está bem. Tchau.
- Tchau.

E eles saem olhando muito atentamente para todos os lugares, procurando o relógio tão importante.

Nisso, surge um macaquinho trazendo algo pendurado no braço.
- Oba! Achei um relógio! Se eu vendê-lo, vou ganhar um dinheiro e poder me mudar para outra floresta. Nesta daqui é sempre tudo muito igual, as mesmas árvores, os mesmos animais... Eu quero é viajar, conhecer outras florestas, outros bichos, quem sabe até conhecer uma macaquinha esperta e ficar com ela...

Assim dizendo, sobe num toco e começa a sua propaganda:

- Atenção! Atenção! Eu herdei esse lindo relógio do meu avô, mas eu preciso vendê-lo porque a vida anda difícil, tudo muito caro, e eu preciso de um dinheirinho para realizar alguns projetos... Vinte e cinco! Vinte e cinco! Quem deseja? Quem vai levar?

- Vinte cinco, senhor macaco? Auuuu... - perguntou um lobo que passava por ali.
- Cento e vinte e cinco, senhor lobo.
- Eu pensei ter ouvido vinte e cinco.
- Com certeza o seu uivo atrapalhou um pouquinho.
- Ah, que pena! Não tenho todo esse dinheiro. Fica para uma outra vez. Auuuu...

- Cento e vinte e cinco! Cento e vinte e cinco apenas por este relógio. Quem vai levar?
- Cento e vinte e cinco? - perguntou o tucano interrompendo o voo.
- Não, senhor tucano, eu disse mil cento e vinte e cinco! O barulho de suas asas não deixou o senhor ouvir direito.
- Ah, é muito caro para mim.
- Podemos dividir em cinco vezes. Não é bom?
- Sinto muito, mas não tenho todo esse dinheiro, disse o tucano levantando voo. (Reloginho caro, esse – resmungou ele...)

- Tucaninho pão duro! Mil cento e vinte cinco! Somente mil cento e vinte e cinco...

Assim o macaquinho decidiu continuar seu negócio, mas mudou de ideia rapidamente ao ver uma onça com cara de poucos amigos  a mostrar-lhe os dentes enormes, sem a menor paciência para negociatas...  o que o obrigou a subir ligeiro na árvore mais próxima, seguido pela onça que também sabe escalar as altas árvores.

E agora?
O jeito era saltar de árvore em árvore o mais depressa possível e tratar de salvar a sua vida.
Só que, naquela corrida toda, o relógio escorregou do seu braço e caiu bem na frente da tartaruga que passava por ali naquele exato momento.

- Ora, ora, ora... mas não é o relógio do meu amigo galo? Galoooo, gaaaalo! Vem ver o que eu achei!

Vem o galo correndo e arfando.

- Obrigado! Muito obrigado, amiga tartaruga. Onde ele estava?
- Acho que com o próprio sol... hi hi hi... Não falei que tudo que é nosso volta para nós?

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Standlik

                                                                             





Gostava de ficar sentado na última prateleira da estante onde enfileiravam-se os Clássicos da Literatura Mundial.                                                            
Às vezes mostrava-se como um menino quieto e bastante alheio a tudo, outras vezes vestia-se de pirata ou de um herói ao seu bel-prazer e fazendo piruetas das mais diversas, parava subitamente, apoiando um pé no calcanhar e o outro em ponta, balançava a cabeça cheia de guizos e dizia num gritinho: standlik!
Eu já me acostumara com sua presença e, quando abria a porta e não o via, assoviava ou dava pancadinhas na mesa: pam-pam-pam-ran-pam...pam! pam!
Ele então levantava a cabeça numa careta: hora do descanso! Como eu permanecesse parada, com os braços cruzados sem esboçar reação alguma, saltava diante de mim e fazia uma reverência galante.
- Hora do senhor ir passear...
- Nas terras do sem-fim?
- Bem além delas. Preciso trabalhar.
- Eu fico quieto, prometo!
- Suas promessas são falsas. Ade-eus...
- Puxa vida! Você é a única pessoa que conversa comigo, que me vê e tem coragem de mandar embora?!
- Humm... chantagem emocional a essa hora, menino?
- Posso?
- Subindo...
E voltava com um sorriso para o seu posto.

Quando a sala se enchia das vozes e dos olhares curiosos das crianças no contato com os livros, ele fazia caretas e tampava os ouvidos, sempre tentando me chamar a atenção.
Era o meu duendezinho sábio, como gostava de chamá-lo, e ele se empertigava todo fazendo surgir do ar uma florzinha que beijava e me oferecia num galanteio, um mimo só, o meu pequeno amigo...
- Por que você não se torna escritora?
- Quem perderia tempo em editar as minhas bobagens? Sou uma tola romântica, nada mais.
- Ah! Aprendeu a fazer chantagem emocional também, é? Muitas vezes funciona, viu?
- Tchau! Hora de ir para casa.
Naquela tarde levei um susto! Ao abrir minha bolsa percebi que o meu duendezinho estava lá, muito quieto, triste de dar dó! Parecia  doente. Eu me apressei para chegar em casa e verificar, entender o porquê daquilo tudo.
Já em casa, coloquei-o sobre os meus joelhos e sentindo-lhe a temperatura, perguntei:
- O que você tem, meu amiguinho querido?
- Estou sumindo, não vê?
- Mas por quê?
- Ninguém liga mais pra mim...
- E eu? Não conto?
- Você é uma só.
- Que pode se multiplicar em várias...
- Sério?! Disse ele numa expressão de dúvida.
- Quer morar aqui em casa? Assim, além de me fazer companhia, eu cuido de você enquanto penso em como ajudá-lo. Depois você continua no seu ir e vir de encantador de corações.
O pequeno ente energizado pelas minhas palavras, pulou, correu, dançou e, de repente, numa volitação graciosa, ergueu-se no ar e deu-me um beijo na ponta do nariz o que provocou muito riso e muito espirro também.
O fim de semana foi muito produtivo porque as idéias não paravam e eu anotava as melhores, claro, para depois selecioná-las e colocá-las em prática.
Na semana seguinte, espalhei alguns cartazes pequenos pelos corredores, escadas, pátio e refeitório:
                         
                         Você viu o Standlik?

Não demorou muito e alguns alunos foram me procurar na Biblioteca:
- Licença, professora?
- Pode entrar.
- Quem é o Standlik?
- Ah, ele é um ser muito especial que morava num grande livro, mas ficou tão cansado de nunca mais ser visto pelos leitores que decidiu sair do livrão e dar uma volta por aí mas o coitadinho se perdeu!
- E como vamos saber quem é ele, professora?
- Muito simples: é só começar a ler o Grande Livro de Histórias Infanto-Juvenis, que é uma bela coleção, viu? Ali, vocês encontrarão facilmente o nosso amiguinho fujão.
Standlik estava furioso comigo, mas sua alegria em sentir-se novamente como parte da vida da garotada era tanta, que ele deixou a bronca para depois.
Claro que bolamos vários jogos, cheios de pistas falsas para chegarmos ao esconderijo do nosso duende, e quanto mais demorávamos, mais as crianças curtiam a brincadeira, inventavam outras, contavam histórias, relatavam sonhos onde o nosso personagem era resgatado das mais complicadas situações e elas, as crianças, claro, eram os heróis destemidos...
 Eu, absolutamente cúmplice do meu pequeno amigo, sentia-me divertida e confusa às vezes, porque nunca imaginara um dia tornar-me uma espécie de fada para ajudar um duende e tão engraçadinho, galante e moleque quanto Standlik.
Pena que as Deusas ciumentas logo, logo, vão carregar para muito, muito longe, para outras terras, o meu duende de mim...
                                                     
                                                    
                                                     






























































































































quarta-feira, 27 de novembro de 2013

O pedinte antenado




                                           


As paredes seculares da Igreja de Santo Expedito, no centro da cidade, servem de apoio para as costas do nosso personagem que, contrariando o comum, forra o chão com um plástico espesso e veste-se com roupas aparentemente limpas.

As muletas na calçada ao lado das pernas em desalinho nos falam de sua deficiência. Observo que tem algo nas mãos e os fios plugados ao seu ouvido me dizem que está antenado à modernidade.E eu me pergunto o que leva uma pessoa, só pelo fato de ter as pernas inertes, tornar-se alvo da caridade pública.

De imediato trago-o aos nossos dias, às nossas atitudes de meros pedintes que nos tornamos ao expormos nossas feridas morais, nossas deficiências afetivas à piedade alheia, forçando nossos irmãos planetários apiedarem-se de nós, estendendo-nos sua atenção e tempo preciosos em função dos nossos problemas, como se a falta de algo ou de alguém nos impedisse de trabalhar em prol do nosso próprio crescimento, maturidade e independência.

Tomemos o exemplo do físico britânico Stephen Hawking a quem a vida retirou quase tudo deixando-lhe intacta a inteligência. E ele, recusando-se ao papel de pedinte, fez-se gerente da empresa de sua própria vida, superando a si mesmo e servindo à humanidade com suas contribuições científicas.


                                                                     
                                                                   




                                                                                                                                       

terça-feira, 5 de novembro de 2013

João Gaiolinha




                                            
                                



                                         

Quando João Gaiolinha morreu, na saleta do seu casebre tinha mais passarinho do que gente!

O número de pessoas só foi aumentando durante o enterro porque sobre o caixão do nosso personagem pássaros de todo tipo vieram pousar.

João ficara conhecido como Gaiolinha porque ele mesmo construíra, com varetas de imbira, uma gaiola pequena e todo mês, com seu salário minguado, comparecia à Feira Livre e comprava uma ou duas aves.

No dizer local entrava mudo e saía calado, mas estava sempre por ali cumprindo seu estranho ritual.

Muita gente ficava bem de vida com aquele tipo de comércio, no entanto João vivia numa pobreza de fazer dó!

O que será que ele fazia com tanto passarinho?

E as línguas ferinas alfinetavam feito vodu o pobre homem:

- Será que ele compra os bichinhos pra comer?
- Que maldade!
- Vai ver pertence a alguma seita e tem trato com o demo...
- Cruz credo!
- É por isso mesmo que vive naquela miséria. Bem feito!

E assim seguia a vida... João com seus mistérios e as pessoas com seus julgamentos.

Até que um dia, Gererê, moleque como ele só e intrometido como ninguém, decidiu se atocaiar no mato e descobrir, de qualquer jeito, o segredo de João.

Madrugadinha, o sol começando a se espreguiçar no horizonte, João abre a porta do casebre. Olha o tempo e com a gaiolinha na mão, se embrenha mato adentro, seguido de longe por Gererê que registrava todos os seus movimentos e atitudes.

Num determinado ponto da mata, parou, tirou o chapéu, abriu a portinhola, enfiou a mão na gaiolinha, pegou a ave, deu-lhe um beijo na cabeça e devolveu-a à liberdade.

Gererê ficou mudo diante da cena inesperada!
Pensou: amanhã vou visitar João, pedir desculpas e pensar num jeito de oferecer uma ajuda para ele.

Mas a Morte chegou antes...

Por isso, jamais devemos adiar um pedido de desculpas ou fazer uma boa ação a quem quer que seja.


                                             



                                            






domingo, 27 de outubro de 2013

Vlap, o morceguinho curioso










            

Vlap era um morceguinho muito diferente de seus irmãos.
E quem desejasse visitá-los em casa, ficaria sabendo que eles moravam naquela árvore grande bem em frente à Universidade.

Mas apesar de morar em um ambiente tão movimentado, ele vivia triste, muito triste, porque seus dias eram sempre tão iguais!

Certa vez ele decidiu sair voando sozinho e descobriu ali, bem pertinho de sua árvore-casa, uma Brinquedoteca! Uma lindeza!
Mas quando começou a explorar aquele espaço mágico, repleto de  jogos, brinquedos variados, fantasias encantadoras, livros coloridos, com muitas figuras até da família dele... ouviu vozes.

Hora de me esconder. Pensou. As pessoas têm medo de morcegos... Por que será? Será que é por causa das histórias terríveis que inventam sobre nós? Mas nós somos tão amigos da mãe-natureza, ajudamos na polinização das flores, por que será que elas não gostam da gente? Pensava ele, escondido todo encolhidinho entre um dos armários e a parede.

As crianças entraram falando alto, escolhendo o melhor lugar para se sentar, conversar, perguntar tudo, aprontar todas e nem imaginavam que tinha alguém escutando tudo o que elas diziam...

E esse alguém se sentiu muito, muito triste quando uma menina, olhando um livro esquecido sobre o almofadão, apontou a ilustração da capa e exclamou numa careta:

- Ai, meu Deus! Que bicho feio!
- Qual?
- Este aqui, disse apontando para a ilustração.
- Como é nome desse bicho aqui, tia?
- É um morcego.
- Ai! Muito feio...

E Vlap entendeu então que as pessoas temiam os morcegos por causa de sua feiúra. Ah! Por que ele não nascera beija-flor?
Os beija-flores são tão lindos! E todo mundo gosta deles...
Mas ele tinha que se conformar com seu destino...
De repente, uma idéia: e se ele se vestisse de beija-flor? Será que daria certo?


Depois que todo mundo foi embora e as estrelas começaram a brincar de pique esconde com algumas nuvens, Vlap voltou para casa e começou a contar para os irmãos sobre a sua grande descoberta e seu grande sonho em se tornar um animalzinho de estimação das crianças da Brinquedoteca.

Será que alguém daqui adotaria um morceguinho como seu bichinho de estimação?

Bom, dizem que quando a gente deseja alguma coisa com toda sinceridade, aquilo vira verdade e um dia... olhem só o que aconteceu:

 Vlap foi descoberto pelas crianças e pelas tias da Brinquedoteca porque ficou até tarde lendo um livrão de Fábulas e acabou sendo flagrado dormindo sobre o livro!

E agora?! O que será que aconteceu com o nosso simpático morceguinho?

Será que as crianças maltrataram o Vlap? E as tias?
Mas olhem só que surpresa boa!

Porque ali naquela Brinquedoteca as crianças aprenderam a amar e respeitar todos os seres da criação com as lições e músicas de Francisco de Assis, elas tiveram uma reação surpreendente:

Fotografaram o morceguinho e pediram a ele que fosse contar a história da sua vida e de toda sua família para todo mundo na Brinquedoteca. Não é lindo?!

E o público teve a chance de ver o nosso Vlap, todo arrumadinho, com uma roupinha bem linda,  óculos redondinhos, com um livro que ele mesmo tinha escrito, começando a sua história igualzinho os grandes escritores:

Era uma vez...






domingo, 20 de outubro de 2013

Surpresas da vida


                      

                                        





Quando Floriano chegou ao Sítio, foi surpreendido por um forte temporal que o deixou um tanto fora de controle, temendo repetir-se a tragédia de alguns anos.
De repente um ruído de motor lá fora o fez esquecer suas preocupações e, olhando através da janela, vê uma caminhonete amarela estacionada com os faróis acesos. Chega até a varanda e grita:
- Quem é?
- Vitória! Tenho um sítio aqui próximo ao seu, mas a ponte ruiu e não posso chegar até em casa. Posso estacionar aqui?
- Entra, por favor! Vou gostar de ter companhia.
Quando Vitória desceu do veículo, Floriano surpreendeu-se com sua presença! Era uma mulher madura, os cabelos brancos, lisos pelos ombros, olhos azuis, com algumas marcas do tempo, lábios delicados, dentes perfeitos e uma pele morena que lhe emprestava uma beleza singular.
- Obrigada! Como se chama?
- Floriano.
- Muito prazer, garoto!
- Garoto? Tenho 29 anos!
- Desculpe! Não quis ofendê-lo. É mania que tenho de chamar as pessoas desse jeito.  Amigos?  E estendeu a mão a ele num gesto amistoso.
- Amigos, claro!
Vitória sorri e o abraça carinhosamente e Floriano mal disfarça a ansiedade que o perturba.  Há naquela mulher alguma coisa que o tira do próprio eixo.
- Você quer comer ou beber algo?
- Um conhaque, se tiver.
- Conhaque?!
- E por que não? Você por acaso é abstêmio, garo... quer dizer, Floriano?
- Não! Mas é que...
- ... para uma mulher, e da minha idade fica estranho, não é assim?
- Não tire conclusões precipitadas, Vitória, apenas não é comum algo assim. Só isso.
- Olha, não existe nada que eu não saiba. Essa é uma das vantagens que o tempo oferece: experiência, conhecimento. Mas quero que saiba também que o tempo não nos tira a condição ou a situação de feminilidade. Você é um belo jovem, Floriano! E possui uma rara virtude: o respeito ao ser humano! Obrigada pelo favor. Um dia retribuo, com certeza.
- Você ficou ofendida comigo?
- É preciso muito mais para que eu me ofenda com alguém, principalmente alguém tão bonito assim! Vá visitar-me amanhã.
- Aonde você vai?
- Para minha casa, meu querido! O temporal passou e eu preciso ir.
 - Mas como você pretende ir, se a ponte ruiu?
- Há um atalho que leva muito mais tempo para chegar ao meu sítio, mas como conheço isso tudo e muito bem, sei o quanto é perigoso rodar por aqui sob fortes tempestades. Por isso não arrisquei seguir viagem.
- Por favor, Vitória, espera o amanhecer!
- Não tem medo que eu o seduza?  Diz ela com um sorriso malicioso no  olhar...
Floriano não se contém e puxa-a de encontro ao seu corpo, beijando-a com toda impetuosidade da juventude e ela, por sua vez, o recebe em seu corpo maduro, e o amor acontece naquele sítio distante da civilização. A chama do lampião lambe a treva da noite densa e os dois amantes se entregam ao prazer de um encontro jamais pensado em suas vidas.
A manhã os surpreende despidos sobre o leito em desalinho. Vitória sorri e uma vez mais os lábios de Floriano colhem o mel silvestre, o orvalho matutino.
De repente ela se levanta buscando uma ducha e mergulha de corpo inteiro na tepidez da água em abundância.  E é tão natural, tão livre de pudores que fascina o jovem amante, cujo desejo é retê-la um pouco mais, buscando-lhe o corpo perfumado e vigoroso a atraí-lo como a flor ao colibri.
Depois insiste em acompanhá-la até sua casa.Durante o percurso, mais longo pelo atalho que tiveram que buscar, ela liga o som, canta, mostra a ele todos os lugares por onde passam e Floriano surpreende-se ao chegarem à divisa de suas terras, pois ali fora erguido um totem que impressionava pela riqueza dos detalhes nos contornos.
- Uau! Que peça linda! Linda e rara! Onde você garimpou essa maravilha?
- Eu que fiz!
- Você?
- Sim, eu.
- Tem outros exemplares?
- Forneço algumas peças para decoradores de vários estados brasileiros e alguns do exterior.
- Estamos diante de uma artista então?
- Digamos uma artesã. A arte de esculpir, de ver na madeira bruta a forma delicada e sutil à espera do buril a delineá-la, dar-lhe vida, é algo que só se exprime quando a peça está pronta. É apaixonante!
- Como você, Vitória! Fala suavemente como uma carícia.
Ao divisarem o sítio de Vitória, Floriano fica boquiaberto com a força, a marca pessoal daquela mulher em cada ângulo da bela propriedade rural. Até mesmo a mureta que circundava a varanda fora esculpida com um bom gosto indescritível!  Ela parecia ter com as peças um diálogo poético que se traduzia em uma sutileza envolvente.
A partir dali, era outra mulher que se revelava diante dos olhos enamorados de Floriano: era uma artista! Alguém que se permitia o desnudar-se da alma com todas as suas delicadas nuances que encantam os olhos de quem sabe ver!
Vitória transcendia as expectativas de Floriano. Sua casa ampla, confortável com lareira, espreguiçadeiras, esculturas, telas especiais, revelavam a sutileza feminina, a harmonia das cores, dos diferentes materiais, as cortinas transparentes que se deixavam acariciar pelo vento, mostravam o romantismo presente naquele coração. E em meio aquilo tudo, Bela, com seu pelo claro e seus olhos mansos que sabia quem ela poderia deixar entrar naquele santuário onde só ela era a guardiã atenta e fiel.
- Bela! Venha, minha garota! Venha conhecer Floriano!
E bela, suspendendo as patas dianteiras, as apoia no peito de Floriano que lhe retribui o carinho:
- Oi, Bela! Linda garota!
E assim parece ganhar mais uma parte do coração de Vitória que sorri com gosto!
- Ainda preciso mostrar-lhe outros recantos que são meus esconderijos quando preciso trabalhar. Agora eu o convido para a parte mais saborosa da casa!
E o conduzindo pela mão segue para a cozinha que se integrava à natureza com seus janelões abertos aos pares e deixavam ver um moderno fogão a lenha, móveis rústicos, panelas de barro, grandes cestos, jarrões, bilhas de cerâmica e uma tela em natureza morta finalizando o ambiente.
- Lola! Temos visitas, minha gostosura! E assim dizendo beijava-lhe a cabeça envolvida por um lenço, que Vitória ajeitava, puxando daqui pra lá, de lá pra cá.
– Quem é?
- É Floriano. Ele veio conhecer você, minha deusa!
- Me deixa ver ele, menina tonta!
- Não vai roubá-lo de mim, hein, sua feiticeira!
Lola pede que Floriano se aproxime e passa as mãos nos seus cabelos, no seu rosto, devagar, sentindo cada ângulo de sua face. Depois, apóia as duas mãos em seus ombros e sentencia:
- É bonito, Vitória! E inspira confiança, n’é não, Bela?
Bela responde com latidos amistosos e apoia a cabeça delicadamente em seu colo esperando o carinho habitual.
Floriano emociona-se vendo toda aquela ternura envolvendo seres tão especiais e o recebendo com tanto carinho que sente um desejo enorme de retribuir tudo aquilo, mas nem imaginava como ou quando poderia fazê-lo...
Lola era cega, mas, “via” tudo e todos pelo toque das mãos que eram de ouro naquele seu reino encantado. 
- Lola é uma feiticeira disfarçada de cozinheira, sabe, Floriano? Ela fica se babando toda porque eu não sei nada de arte culinária e por isso, me esnoba à vontade.
- Ara! Resmunga Lola se empertigando toda, se avia, menina! Larga mão de “bobage” que ocê, mais que eu, sabe com precisão, tudo o que é preciso se fazer nessa vida!
- Bela! Bela, vem cá, garota! Vai buscar o Cigano, vai!
Bela, num salto ganha o terreiro e volta daí a alguns minutos puxando pela rédea, com a boca, um belíssimo cavalo malhado que já encilhado causou estranheza a Floriano:
- Bela, você também encilhou o Cigano?
- Não, senhor! Fui eu mesmo. Afirma Lourenço, o filho de Lola, espécie de capataz da fazenda, que recebera de Vitória a bênção do batismo, das primeiras letras, do carinho da maternidade que ela não obtivera.
Mas Vitória, entre tantas qualidades que possuía, ainda herdara de sua mãe o talento de jamais queixar-se de coisa alguma, fosse o que fosse, a tônica era manter sempre o bom humor e o otimismo.
Lourenço, discreto e calado era a sombra de sua madrinha a quem devotava toda gratidão desse mundo, pela generosidade ímpar daquela bela mulher; e, a um gesto seu, leva o polegar e o indicador  aos lábios e ao potente assobio, surge Apache, um cavalo negro que era o xodó do rapaz, sua primeira grande conquista.
- Ah, garoto! O que seria de mim sem você? Diz ela, estalando um beijo no rosto de Lourenço, que sorri sem jeito diante de Floriano.
- Vem Apache, chega aqui perto, garotão!
E Apache meneia a cabeça vigoroso, levando a pata esquerda um pouco à frente, toca levemente o focinho na altura do joelho, num movimento gracioso.
Vitória o abraça e beija-lhe o pescoço, dizendo num sorriso a Floriano:
- Ele não é lindo?
- Linda é você, meu amor!  Você é alma de tudo isso aqui, onde todos volitam à sua volta, como se de seu interior emanasse um ímã poderoso a atrair e a dar um movimento dinâmico fazendo tudo funcionar harmoniosamente.
- Ah, não sou nada disso! Você que é um poeta. Vamos?
Montam os animais e saem pela região entre sorrisos, suspiros e olhares cúmplices, próprios dos apaixonados.
Vitória o conduz até a cabana, uma construção em troncos sobre um ingazeiro, onde ela costumava ficar horas projetando suas peças.
E ali, o amor falou alto e seus corpos entrelaçados, pareciam nunca mais desejarem se apartar.
Como explicar-se o amor? Não tem explicação. Em nenhuma área do conhecimento humano esse pequeno deus, esse movimento da alma, pôde ser compreendido pelo homem.
Súbito, ela fecha os olhos e pedindo que ele permaneça imóvel, começa a palmilhar com os dedos, agilmente, todo o seu corpo.
- Como você quer que eu fique imóvel, amor?
- Shhh.. São meus dedos que precisam vê-lo. Fica quieto, garoto!
- Só se eu estivesse morto!
- Pensa que está e não me desconcentre, Floriano. Não vê que estou com olhos fechados? Quieto!
- Está bem. Prometo que vou me esforçar.  Mas para que esse ritual todo?
- Depois eu falo. E ela prossegue séria, compenetrada, no seu passeio inusitado.
Ao terminar levanta-se e com determinação na voz, revela:
- Vou esculpir você.
- In natura?
- Hum, hum! É mais doce, fala levando o indicador aos lábios numa atitude provocante e sexy.
Floriano não resiste e a atrai ao peito num suspiro:
- Faça de mim o que bem quiser, minha deusa! Sou seu escravo.
- Prefiro que você seja o meu amor, o meu homem! Eu amo você.
E se abandonaram à doce magia daquele sentimento forte e envolvente.
- Sabe, Flô, meu estômago está me dizendo que é hora de voltarmos.
- Sei. Eu também estou zonzo de fome, mas aqui está tão bom ...
- É, mas devemos ir. Amanhã eu volto porque vou começar meu novo projeto e sempre fico aqui para trabalhar.
- Como volto? E eu?
- Você só vem com uma condição:
- ?!
- Ficar quieto enquanto eu trabalho. Fechado?
- Fechado.
Descem da cabana, retomam suas montarias e regressam à casa onde o aroma inigualável da comida de Lola ia longe, como a apressá-los. Uma chuveirada rápida, e a refeição se fez ainda mais saborosa.
Após o almoço Vitória pegou o cavalete e com uma rapidez espantosa começou a desenhar a figura de Floriano.
- Esse vai ficar comigo, no meu quarto, quando você for embora.
- E quem disse que vou?
- Não vai?
- Só se você quiser.
- E quem disse que eu quero?
- Vitória, quando busquei o Sítio o fiz para fugir de uma grande decepção e a vida me coloca você no caminho! Você com toda essa energia, alegria, generosidade, essa vontade de viver, essa capacidade de entregar-se e de doar-se aos outros com uma intensidade tão linda que chega a comover! Como eu posso querer, pensar em ir embora? 
- Floriano, eu não teço ilusões. Apenas vivo intensamente cada minuto como se não houvesse o amanhã. Porque ao buscarmos sofregamente esse amanhã, deixamos de viver o hoje, o agora. A vida me ensinou a ser assim.
- Ontem foi hoje, esqueceu?
- Não.
- Então vivamos hoje e quando amanhã tornar-se hoje, vamos rir de nós dois, de nossos medos. Promete?
- Está bem. Veja! E ela exibe sua tela em pastel, com um domínio perfeito de luzes e sombras que encantou seu modelo:
- Fiquei até bonito!
- Você é bonito!
- Posso fazer um pedido?
- Claro.
- Reproduza nós dois.
- Como?
- Assim! Disse ele abraçando-a por trás e posicionando seu rosto colado ao dela de frente para o espelho.
- Adoro desafios!
- Agora?
- Amanhã.
- Viu querida? O ontem, o hoje e o amanhã jamais se dissociam.
Nesse momento, Bela arranha a porta do quarto e late com insistência, indicando que algo não vai bem.
Vitória, num salto, abre a porta e abraça a cadela olhando-a como a querer adivinhar seu comportamento.
- O que foi, Bela?
Desvencilhando-se, a cadela segue para a cozinha acompanhada pelos dois namorados, que não disfarçam sua apreensão.
Lourenço, com o chapéu nas mãos, demonstrando nervosismo se apressou em dizer:
- Madrinha, um dos cavalos tem um ferimento no dorso e apresenta um comportamento estranho.
- Vamos até lá. E seguiram até a baia onde os animais eram recolhidos a certa hora do dia.
Floriano acercou-se do animal e pediu que Lourenço providenciasse água e sabão. Lavou o ferimento e balançando tristemente a cabeça, adiantou:
- Isso é mordida de morcego.
- Como você sabe?
- Sou veterinário, Vitória.
- E...
- Temos que descobrir o esconderijo deles e deslocá-los porque infelizmente são os animais de grande porte seu alvo preferido.
- E quanto ao animal?
- Só sacrificando.
Os grandes olhos azuis de Vitória turvaram-se de lágrimas. Lourenço cerrou os dentes e estalou todos os dedos de uma vez, gesto que repetia quando estava nervoso ou preocupado.
- Isso não é justo, Floriano! Não é justo! Eu nunca consegui encontrar serenidade diante da morte. Sempre busco lutar a favor da vida. Deve haver uma saída, meu Deus!
- Infelizmente ainda não há. Morcegos hematófagos não são muito comuns na natureza, mas quando se localizam em alguma parte, o combate é difícil.
Vitória lembrou-se então que em ponto bem distante dali, num local de difícil acesso, havia uma gruta onde provavelmente serviria de esconderijo para eles.
- Podemos bloquear a saída da gruta.
- É uma alternativa, mas existe a Lei de Proteção à Fauna e nesse caso específico, devemos convocar a Equipe de controle de Zoonoses que além de tomarem as providências legais promovem a vacinação em massa dos animais.
- Por que isso? Perguntou Lourenço.
- Porque no caso da raiva, há prejuízo para grande parte de qualquer rebanho.
Aquilo era o tendão de Aquiles para Vitória que, nessa hora, demonstrou sua fragilidade a agradeceu a presença de Floriano, seu conhecimento sobre o assunto e todos os esclarecimentos e providências devidas  e tomadas em seu favor.
Passado aquele tumulto, Vitória retoma seu modo habitual de ser e recomeça seu projeto. Após o processo com a argila, usa folhas finíssimas de estanho que a certa temperatura, se liquefazem, moldando-se ao gosto do artista.
Floriano olhava aquela criatura a sua frente e pensava o quanto ela era admirável e o quanto ele a amava. Começou então a arquitetar um plano para dar continuidade àquela relação de amor tão bonita, tão intensa!
Quando Vitória concluiu sua estatueta, utilizou um tipo de resina que em pequenas gotas dava a impressão do corpo esculpido estar molhado, orvalhado talvez. O resultado era surpreendente!
Ao visualizar sua réplica e de forma tão delicada, Floriano com os olhos marejados, abraçou-a com ternura e em tom sério, disse-lhe num sussurro:
- Preciso confessar-lhe algo e não quero que você me interrompa.
- ?
- Vou me transferir para o Sítio, iniciar um projeto Volante de Assistência Veterinária e Ambiental aqui nessa região. E quero me casar com você, Vitória.
Vitória deu um longo suspiro, arqueou as sobrancelhas e acrescentou:
- Bom, não é todo dia que alguém é pedido em casamento e eu seria muito tola se recusasse, mas...
- Mas o quê, minha deusa?
- E sua família, meu bem? Você já pensou sobre isso?
- Você se recorda da tragédia no Sítio quando meu pai foi levado pelas águas na enchente do Boqueirão?
- Eu não estava no Brasil nessa época, mas soube do acontecido. Sinto muito, Floriano!
- Ficamos eu e mamãe a nos socorrermos mutuamente durante alguns anos até que ela também se foi. Eu, à época, bastante fragilizado, me apeguei muito a Lisânia, uma colega da Universidade, que terminou me causando uma grande desilusão quando, já quase às vésperas do nosso casamento, fugiu com um ex-namorado para a Europa.
Mergulhei mais e mais nos estudos, buscando maiores realizações, especializações e esquecimento. Decidi vir até aqui para descansar um pouco e a vida me deu você de presente.  Tem alguma outra objeção?
- Só uma coisinha: permanecemos em nossos próprios espaços, fechado?
- Por que isso?
- Porque preciso de uma certa solidão, certa privacidade. Coisa de artista, eu creio.  Influência de Simone de Beauvoir, talvez. Mas você tem trânsito livre aqui. A casa é sua.
- O mesmo para você. E quero dizer que estou muito feliz em ter aceitado meu pedido. Confesso que senti certo temor em ouvir um não dessa boca gostosa de cereja madura.
Eles se beijam longamente sendo interrompidos por Bela que, enciumada, parecendo ter compreendido todo aquele acordo, pulava, latia, corria, parava e voltava rápida para receber o carinho de seus donos.
- Vem, Bela! Vem, garota!  E a voz amorosa de Vitória ressoava pela casa que receberia na varanda uma nova escultura: 
Um ninho com um casal de passarinhos a se beijarem, simbolizando o encontro de dois corações apaixonados.