domingo, 27 de outubro de 2013

Vlap, o morceguinho curioso










            

Vlap era um morceguinho muito diferente de seus irmãos.
E quem desejasse visitá-los em casa, ficaria sabendo que eles moravam naquela árvore grande bem em frente à Universidade.

Mas apesar de morar em um ambiente tão movimentado, ele vivia triste, muito triste, porque seus dias eram sempre tão iguais!

Certa vez ele decidiu sair voando sozinho e descobriu ali, bem pertinho de sua árvore-casa, uma Brinquedoteca! Uma lindeza!
Mas quando começou a explorar aquele espaço mágico, repleto de  jogos, brinquedos variados, fantasias encantadoras, livros coloridos, com muitas figuras até da família dele... ouviu vozes.

Hora de me esconder. Pensou. As pessoas têm medo de morcegos... Por que será? Será que é por causa das histórias terríveis que inventam sobre nós? Mas nós somos tão amigos da mãe-natureza, ajudamos na polinização das flores, por que será que elas não gostam da gente? Pensava ele, escondido todo encolhidinho entre um dos armários e a parede.

As crianças entraram falando alto, escolhendo o melhor lugar para se sentar, conversar, perguntar tudo, aprontar todas e nem imaginavam que tinha alguém escutando tudo o que elas diziam...

E esse alguém se sentiu muito, muito triste quando uma menina, olhando um livro esquecido sobre o almofadão, apontou a ilustração da capa e exclamou numa careta:

- Ai, meu Deus! Que bicho feio!
- Qual?
- Este aqui, disse apontando para a ilustração.
- Como é nome desse bicho aqui, tia?
- É um morcego.
- Ai! Muito feio...

E Vlap entendeu então que as pessoas temiam os morcegos por causa de sua feiúra. Ah! Por que ele não nascera beija-flor?
Os beija-flores são tão lindos! E todo mundo gosta deles...
Mas ele tinha que se conformar com seu destino...
De repente, uma idéia: e se ele se vestisse de beija-flor? Será que daria certo?


Depois que todo mundo foi embora e as estrelas começaram a brincar de pique esconde com algumas nuvens, Vlap voltou para casa e começou a contar para os irmãos sobre a sua grande descoberta e seu grande sonho em se tornar um animalzinho de estimação das crianças da Brinquedoteca.

Será que alguém daqui adotaria um morceguinho como seu bichinho de estimação?

Bom, dizem que quando a gente deseja alguma coisa com toda sinceridade, aquilo vira verdade e um dia... olhem só o que aconteceu:

 Vlap foi descoberto pelas crianças e pelas tias da Brinquedoteca porque ficou até tarde lendo um livrão de Fábulas e acabou sendo flagrado dormindo sobre o livro!

E agora?! O que será que aconteceu com o nosso simpático morceguinho?

Será que as crianças maltrataram o Vlap? E as tias?
Mas olhem só que surpresa boa!

Porque ali naquela Brinquedoteca as crianças aprenderam a amar e respeitar todos os seres da criação com as lições e músicas de Francisco de Assis, elas tiveram uma reação surpreendente:

Fotografaram o morceguinho e pediram a ele que fosse contar a história da sua vida e de toda sua família para todo mundo na Brinquedoteca. Não é lindo?!

E o público teve a chance de ver o nosso Vlap, todo arrumadinho, com uma roupinha bem linda,  óculos redondinhos, com um livro que ele mesmo tinha escrito, começando a sua história igualzinho os grandes escritores:

Era uma vez...






domingo, 20 de outubro de 2013

Surpresas da vida


                      

                                        





Quando Floriano chegou ao Sítio, foi surpreendido por um forte temporal que o deixou um tanto fora de controle, temendo repetir-se a tragédia de alguns anos.
De repente um ruído de motor lá fora o fez esquecer suas preocupações e, olhando através da janela, vê uma caminhonete amarela estacionada com os faróis acesos. Chega até a varanda e grita:
- Quem é?
- Vitória! Tenho um sítio aqui próximo ao seu, mas a ponte ruiu e não posso chegar até em casa. Posso estacionar aqui?
- Entra, por favor! Vou gostar de ter companhia.
Quando Vitória desceu do veículo, Floriano surpreendeu-se com sua presença! Era uma mulher madura, os cabelos brancos, lisos pelos ombros, olhos azuis, com algumas marcas do tempo, lábios delicados, dentes perfeitos e uma pele morena que lhe emprestava uma beleza singular.
- Obrigada! Como se chama?
- Floriano.
- Muito prazer, garoto!
- Garoto? Tenho 29 anos!
- Desculpe! Não quis ofendê-lo. É mania que tenho de chamar as pessoas desse jeito.  Amigos?  E estendeu a mão a ele num gesto amistoso.
- Amigos, claro!
Vitória sorri e o abraça carinhosamente e Floriano mal disfarça a ansiedade que o perturba.  Há naquela mulher alguma coisa que o tira do próprio eixo.
- Você quer comer ou beber algo?
- Um conhaque, se tiver.
- Conhaque?!
- E por que não? Você por acaso é abstêmio, garo... quer dizer, Floriano?
- Não! Mas é que...
- ... para uma mulher, e da minha idade fica estranho, não é assim?
- Não tire conclusões precipitadas, Vitória, apenas não é comum algo assim. Só isso.
- Olha, não existe nada que eu não saiba. Essa é uma das vantagens que o tempo oferece: experiência, conhecimento. Mas quero que saiba também que o tempo não nos tira a condição ou a situação de feminilidade. Você é um belo jovem, Floriano! E possui uma rara virtude: o respeito ao ser humano! Obrigada pelo favor. Um dia retribuo, com certeza.
- Você ficou ofendida comigo?
- É preciso muito mais para que eu me ofenda com alguém, principalmente alguém tão bonito assim! Vá visitar-me amanhã.
- Aonde você vai?
- Para minha casa, meu querido! O temporal passou e eu preciso ir.
 - Mas como você pretende ir, se a ponte ruiu?
- Há um atalho que leva muito mais tempo para chegar ao meu sítio, mas como conheço isso tudo e muito bem, sei o quanto é perigoso rodar por aqui sob fortes tempestades. Por isso não arrisquei seguir viagem.
- Por favor, Vitória, espera o amanhecer!
- Não tem medo que eu o seduza?  Diz ela com um sorriso malicioso no  olhar...
Floriano não se contém e puxa-a de encontro ao seu corpo, beijando-a com toda impetuosidade da juventude e ela, por sua vez, o recebe em seu corpo maduro, e o amor acontece naquele sítio distante da civilização. A chama do lampião lambe a treva da noite densa e os dois amantes se entregam ao prazer de um encontro jamais pensado em suas vidas.
A manhã os surpreende despidos sobre o leito em desalinho. Vitória sorri e uma vez mais os lábios de Floriano colhem o mel silvestre, o orvalho matutino.
De repente ela se levanta buscando uma ducha e mergulha de corpo inteiro na tepidez da água em abundância.  E é tão natural, tão livre de pudores que fascina o jovem amante, cujo desejo é retê-la um pouco mais, buscando-lhe o corpo perfumado e vigoroso a atraí-lo como a flor ao colibri.
Depois insiste em acompanhá-la até sua casa.Durante o percurso, mais longo pelo atalho que tiveram que buscar, ela liga o som, canta, mostra a ele todos os lugares por onde passam e Floriano surpreende-se ao chegarem à divisa de suas terras, pois ali fora erguido um totem que impressionava pela riqueza dos detalhes nos contornos.
- Uau! Que peça linda! Linda e rara! Onde você garimpou essa maravilha?
- Eu que fiz!
- Você?
- Sim, eu.
- Tem outros exemplares?
- Forneço algumas peças para decoradores de vários estados brasileiros e alguns do exterior.
- Estamos diante de uma artista então?
- Digamos uma artesã. A arte de esculpir, de ver na madeira bruta a forma delicada e sutil à espera do buril a delineá-la, dar-lhe vida, é algo que só se exprime quando a peça está pronta. É apaixonante!
- Como você, Vitória! Fala suavemente como uma carícia.
Ao divisarem o sítio de Vitória, Floriano fica boquiaberto com a força, a marca pessoal daquela mulher em cada ângulo da bela propriedade rural. Até mesmo a mureta que circundava a varanda fora esculpida com um bom gosto indescritível!  Ela parecia ter com as peças um diálogo poético que se traduzia em uma sutileza envolvente.
A partir dali, era outra mulher que se revelava diante dos olhos enamorados de Floriano: era uma artista! Alguém que se permitia o desnudar-se da alma com todas as suas delicadas nuances que encantam os olhos de quem sabe ver!
Vitória transcendia as expectativas de Floriano. Sua casa ampla, confortável com lareira, espreguiçadeiras, esculturas, telas especiais, revelavam a sutileza feminina, a harmonia das cores, dos diferentes materiais, as cortinas transparentes que se deixavam acariciar pelo vento, mostravam o romantismo presente naquele coração. E em meio aquilo tudo, Bela, com seu pelo claro e seus olhos mansos que sabia quem ela poderia deixar entrar naquele santuário onde só ela era a guardiã atenta e fiel.
- Bela! Venha, minha garota! Venha conhecer Floriano!
E bela, suspendendo as patas dianteiras, as apoia no peito de Floriano que lhe retribui o carinho:
- Oi, Bela! Linda garota!
E assim parece ganhar mais uma parte do coração de Vitória que sorri com gosto!
- Ainda preciso mostrar-lhe outros recantos que são meus esconderijos quando preciso trabalhar. Agora eu o convido para a parte mais saborosa da casa!
E o conduzindo pela mão segue para a cozinha que se integrava à natureza com seus janelões abertos aos pares e deixavam ver um moderno fogão a lenha, móveis rústicos, panelas de barro, grandes cestos, jarrões, bilhas de cerâmica e uma tela em natureza morta finalizando o ambiente.
- Lola! Temos visitas, minha gostosura! E assim dizendo beijava-lhe a cabeça envolvida por um lenço, que Vitória ajeitava, puxando daqui pra lá, de lá pra cá.
– Quem é?
- É Floriano. Ele veio conhecer você, minha deusa!
- Me deixa ver ele, menina tonta!
- Não vai roubá-lo de mim, hein, sua feiticeira!
Lola pede que Floriano se aproxime e passa as mãos nos seus cabelos, no seu rosto, devagar, sentindo cada ângulo de sua face. Depois, apóia as duas mãos em seus ombros e sentencia:
- É bonito, Vitória! E inspira confiança, n’é não, Bela?
Bela responde com latidos amistosos e apoia a cabeça delicadamente em seu colo esperando o carinho habitual.
Floriano emociona-se vendo toda aquela ternura envolvendo seres tão especiais e o recebendo com tanto carinho que sente um desejo enorme de retribuir tudo aquilo, mas nem imaginava como ou quando poderia fazê-lo...
Lola era cega, mas, “via” tudo e todos pelo toque das mãos que eram de ouro naquele seu reino encantado. 
- Lola é uma feiticeira disfarçada de cozinheira, sabe, Floriano? Ela fica se babando toda porque eu não sei nada de arte culinária e por isso, me esnoba à vontade.
- Ara! Resmunga Lola se empertigando toda, se avia, menina! Larga mão de “bobage” que ocê, mais que eu, sabe com precisão, tudo o que é preciso se fazer nessa vida!
- Bela! Bela, vem cá, garota! Vai buscar o Cigano, vai!
Bela, num salto ganha o terreiro e volta daí a alguns minutos puxando pela rédea, com a boca, um belíssimo cavalo malhado que já encilhado causou estranheza a Floriano:
- Bela, você também encilhou o Cigano?
- Não, senhor! Fui eu mesmo. Afirma Lourenço, o filho de Lola, espécie de capataz da fazenda, que recebera de Vitória a bênção do batismo, das primeiras letras, do carinho da maternidade que ela não obtivera.
Mas Vitória, entre tantas qualidades que possuía, ainda herdara de sua mãe o talento de jamais queixar-se de coisa alguma, fosse o que fosse, a tônica era manter sempre o bom humor e o otimismo.
Lourenço, discreto e calado era a sombra de sua madrinha a quem devotava toda gratidão desse mundo, pela generosidade ímpar daquela bela mulher; e, a um gesto seu, leva o polegar e o indicador  aos lábios e ao potente assobio, surge Apache, um cavalo negro que era o xodó do rapaz, sua primeira grande conquista.
- Ah, garoto! O que seria de mim sem você? Diz ela, estalando um beijo no rosto de Lourenço, que sorri sem jeito diante de Floriano.
- Vem Apache, chega aqui perto, garotão!
E Apache meneia a cabeça vigoroso, levando a pata esquerda um pouco à frente, toca levemente o focinho na altura do joelho, num movimento gracioso.
Vitória o abraça e beija-lhe o pescoço, dizendo num sorriso a Floriano:
- Ele não é lindo?
- Linda é você, meu amor!  Você é alma de tudo isso aqui, onde todos volitam à sua volta, como se de seu interior emanasse um ímã poderoso a atrair e a dar um movimento dinâmico fazendo tudo funcionar harmoniosamente.
- Ah, não sou nada disso! Você que é um poeta. Vamos?
Montam os animais e saem pela região entre sorrisos, suspiros e olhares cúmplices, próprios dos apaixonados.
Vitória o conduz até a cabana, uma construção em troncos sobre um ingazeiro, onde ela costumava ficar horas projetando suas peças.
E ali, o amor falou alto e seus corpos entrelaçados, pareciam nunca mais desejarem se apartar.
Como explicar-se o amor? Não tem explicação. Em nenhuma área do conhecimento humano esse pequeno deus, esse movimento da alma, pôde ser compreendido pelo homem.
Súbito, ela fecha os olhos e pedindo que ele permaneça imóvel, começa a palmilhar com os dedos, agilmente, todo o seu corpo.
- Como você quer que eu fique imóvel, amor?
- Shhh.. São meus dedos que precisam vê-lo. Fica quieto, garoto!
- Só se eu estivesse morto!
- Pensa que está e não me desconcentre, Floriano. Não vê que estou com olhos fechados? Quieto!
- Está bem. Prometo que vou me esforçar.  Mas para que esse ritual todo?
- Depois eu falo. E ela prossegue séria, compenetrada, no seu passeio inusitado.
Ao terminar levanta-se e com determinação na voz, revela:
- Vou esculpir você.
- In natura?
- Hum, hum! É mais doce, fala levando o indicador aos lábios numa atitude provocante e sexy.
Floriano não resiste e a atrai ao peito num suspiro:
- Faça de mim o que bem quiser, minha deusa! Sou seu escravo.
- Prefiro que você seja o meu amor, o meu homem! Eu amo você.
E se abandonaram à doce magia daquele sentimento forte e envolvente.
- Sabe, Flô, meu estômago está me dizendo que é hora de voltarmos.
- Sei. Eu também estou zonzo de fome, mas aqui está tão bom ...
- É, mas devemos ir. Amanhã eu volto porque vou começar meu novo projeto e sempre fico aqui para trabalhar.
- Como volto? E eu?
- Você só vem com uma condição:
- ?!
- Ficar quieto enquanto eu trabalho. Fechado?
- Fechado.
Descem da cabana, retomam suas montarias e regressam à casa onde o aroma inigualável da comida de Lola ia longe, como a apressá-los. Uma chuveirada rápida, e a refeição se fez ainda mais saborosa.
Após o almoço Vitória pegou o cavalete e com uma rapidez espantosa começou a desenhar a figura de Floriano.
- Esse vai ficar comigo, no meu quarto, quando você for embora.
- E quem disse que vou?
- Não vai?
- Só se você quiser.
- E quem disse que eu quero?
- Vitória, quando busquei o Sítio o fiz para fugir de uma grande decepção e a vida me coloca você no caminho! Você com toda essa energia, alegria, generosidade, essa vontade de viver, essa capacidade de entregar-se e de doar-se aos outros com uma intensidade tão linda que chega a comover! Como eu posso querer, pensar em ir embora? 
- Floriano, eu não teço ilusões. Apenas vivo intensamente cada minuto como se não houvesse o amanhã. Porque ao buscarmos sofregamente esse amanhã, deixamos de viver o hoje, o agora. A vida me ensinou a ser assim.
- Ontem foi hoje, esqueceu?
- Não.
- Então vivamos hoje e quando amanhã tornar-se hoje, vamos rir de nós dois, de nossos medos. Promete?
- Está bem. Veja! E ela exibe sua tela em pastel, com um domínio perfeito de luzes e sombras que encantou seu modelo:
- Fiquei até bonito!
- Você é bonito!
- Posso fazer um pedido?
- Claro.
- Reproduza nós dois.
- Como?
- Assim! Disse ele abraçando-a por trás e posicionando seu rosto colado ao dela de frente para o espelho.
- Adoro desafios!
- Agora?
- Amanhã.
- Viu querida? O ontem, o hoje e o amanhã jamais se dissociam.
Nesse momento, Bela arranha a porta do quarto e late com insistência, indicando que algo não vai bem.
Vitória, num salto, abre a porta e abraça a cadela olhando-a como a querer adivinhar seu comportamento.
- O que foi, Bela?
Desvencilhando-se, a cadela segue para a cozinha acompanhada pelos dois namorados, que não disfarçam sua apreensão.
Lourenço, com o chapéu nas mãos, demonstrando nervosismo se apressou em dizer:
- Madrinha, um dos cavalos tem um ferimento no dorso e apresenta um comportamento estranho.
- Vamos até lá. E seguiram até a baia onde os animais eram recolhidos a certa hora do dia.
Floriano acercou-se do animal e pediu que Lourenço providenciasse água e sabão. Lavou o ferimento e balançando tristemente a cabeça, adiantou:
- Isso é mordida de morcego.
- Como você sabe?
- Sou veterinário, Vitória.
- E...
- Temos que descobrir o esconderijo deles e deslocá-los porque infelizmente são os animais de grande porte seu alvo preferido.
- E quanto ao animal?
- Só sacrificando.
Os grandes olhos azuis de Vitória turvaram-se de lágrimas. Lourenço cerrou os dentes e estalou todos os dedos de uma vez, gesto que repetia quando estava nervoso ou preocupado.
- Isso não é justo, Floriano! Não é justo! Eu nunca consegui encontrar serenidade diante da morte. Sempre busco lutar a favor da vida. Deve haver uma saída, meu Deus!
- Infelizmente ainda não há. Morcegos hematófagos não são muito comuns na natureza, mas quando se localizam em alguma parte, o combate é difícil.
Vitória lembrou-se então que em ponto bem distante dali, num local de difícil acesso, havia uma gruta onde provavelmente serviria de esconderijo para eles.
- Podemos bloquear a saída da gruta.
- É uma alternativa, mas existe a Lei de Proteção à Fauna e nesse caso específico, devemos convocar a Equipe de controle de Zoonoses que além de tomarem as providências legais promovem a vacinação em massa dos animais.
- Por que isso? Perguntou Lourenço.
- Porque no caso da raiva, há prejuízo para grande parte de qualquer rebanho.
Aquilo era o tendão de Aquiles para Vitória que, nessa hora, demonstrou sua fragilidade a agradeceu a presença de Floriano, seu conhecimento sobre o assunto e todos os esclarecimentos e providências devidas  e tomadas em seu favor.
Passado aquele tumulto, Vitória retoma seu modo habitual de ser e recomeça seu projeto. Após o processo com a argila, usa folhas finíssimas de estanho que a certa temperatura, se liquefazem, moldando-se ao gosto do artista.
Floriano olhava aquela criatura a sua frente e pensava o quanto ela era admirável e o quanto ele a amava. Começou então a arquitetar um plano para dar continuidade àquela relação de amor tão bonita, tão intensa!
Quando Vitória concluiu sua estatueta, utilizou um tipo de resina que em pequenas gotas dava a impressão do corpo esculpido estar molhado, orvalhado talvez. O resultado era surpreendente!
Ao visualizar sua réplica e de forma tão delicada, Floriano com os olhos marejados, abraçou-a com ternura e em tom sério, disse-lhe num sussurro:
- Preciso confessar-lhe algo e não quero que você me interrompa.
- ?
- Vou me transferir para o Sítio, iniciar um projeto Volante de Assistência Veterinária e Ambiental aqui nessa região. E quero me casar com você, Vitória.
Vitória deu um longo suspiro, arqueou as sobrancelhas e acrescentou:
- Bom, não é todo dia que alguém é pedido em casamento e eu seria muito tola se recusasse, mas...
- Mas o quê, minha deusa?
- E sua família, meu bem? Você já pensou sobre isso?
- Você se recorda da tragédia no Sítio quando meu pai foi levado pelas águas na enchente do Boqueirão?
- Eu não estava no Brasil nessa época, mas soube do acontecido. Sinto muito, Floriano!
- Ficamos eu e mamãe a nos socorrermos mutuamente durante alguns anos até que ela também se foi. Eu, à época, bastante fragilizado, me apeguei muito a Lisânia, uma colega da Universidade, que terminou me causando uma grande desilusão quando, já quase às vésperas do nosso casamento, fugiu com um ex-namorado para a Europa.
Mergulhei mais e mais nos estudos, buscando maiores realizações, especializações e esquecimento. Decidi vir até aqui para descansar um pouco e a vida me deu você de presente.  Tem alguma outra objeção?
- Só uma coisinha: permanecemos em nossos próprios espaços, fechado?
- Por que isso?
- Porque preciso de uma certa solidão, certa privacidade. Coisa de artista, eu creio.  Influência de Simone de Beauvoir, talvez. Mas você tem trânsito livre aqui. A casa é sua.
- O mesmo para você. E quero dizer que estou muito feliz em ter aceitado meu pedido. Confesso que senti certo temor em ouvir um não dessa boca gostosa de cereja madura.
Eles se beijam longamente sendo interrompidos por Bela que, enciumada, parecendo ter compreendido todo aquele acordo, pulava, latia, corria, parava e voltava rápida para receber o carinho de seus donos.
- Vem, Bela! Vem, garota!  E a voz amorosa de Vitória ressoava pela casa que receberia na varanda uma nova escultura: 
Um ninho com um casal de passarinhos a se beijarem, simbolizando o encontro de dois corações apaixonados.






domingo, 6 de outubro de 2013

Brux e a Pedra-Fonte

   


                                               


                      

Brux recebeu um bilhete do Mago Estelar, incumbindo-a de encontrar a Fonte que morava dentro de uma pedra.
Franziu o cenho e reteve o papel entre as mãos tentando absorver melhor a energia do seu Conselheiro-Mor antes de iniciar a tarefa que lhe fora confiada.
Na saída do casarão, a pequena gruta construída por ela mesma com rochas delicadas que trazia dos vários lugares por onde passava era um ponto de energia onde ela se demorava um pouco mais a meditar, quando precisava resolver algum problema que envolvesse mais mistérios que os costumeiros.
Pegou uma das pedrinhas soltas por ali, reteve-a na mão esquerda por alguns segundos e, ao abri-la, percebeu que sobre o pequeno fragmento de rocha, aparecia uma seta indicando o Norte.
Guardou a pedra-bússola na minúscula bolsa presa no longo cordão que pendia até a cintura, olhou detidamente para cada ângulo da casa em que morava, como se carregasse cada pedacinho com o magnetismo do seu olhar.
Acariciou o pelo negro de Ariosto, seu gato inseparável, cochichou algo à Avínia, sua coruja auxiliar e partiu.
Viajou durante a madrugada como de hábito e, ao amanhecer, chegou ao local indicado pela pedra-bússola.
Um lugar de mata fechada, com um rio sereno e bom caminhando por entre suas árvores densas, repletas de energia nativa e silêncio que tanto agradava à Feiticeira.
Brux aprendera a treinar os ouvidos para captar os conselhos, as orientações e as melodias sutilíssimas do Silêncio. Como era belo tudo aquilo...
Não tinha pressa e por isso palmilhava cada pedaço de chão como se fosse extensão de sua própria casa, segura de si, do que sabia e do que podia realizar.
Ao atingir a cabeceira do rio, escolheu na margem esquerda a árvore mais adequada, instalando ali seu Posto Avançado de Observação.
Em meio à mata, adquiria no olhar e nos movimentos a calma estudada dos felinos, tendo o cuidado de silenciar os próprios pensamentos...
A milenar e misteriosa Brux...
Eu sempre ouvira contar que as feiticeiras eram entes do mal, poderosas e extremamente temidas porque usavam todos os seus poderes para a realização dos piores sortilégios. Mas Brux era diferente. Tinha algo de bom, de confiável apesar de sua escolha em viver sozinha, ser contrária a determinadas práticas, absolutamente avessa aos famigerados rituais comuns aos seus pares. Assim era Brux.
Quando a noite ia alta e a Lua Cheia aproveitava para banhar-se nas águas, a Pedra Solitária na margem direita do rio, bem na direção de sua árvore-posto, mexeu-se como se possuísse vida própria. Diante dos olhos observadores de Brux, a Pedra abriu-se e dela saiu uma jovem que lembrava as ninfas, as nereidas, as náiades da mitologia grega.
Saiu, correu para as águas, mergulhou e de volta à superfície brincou com os raios do luar como se fossem cordas de uma grande lira que ao toque de seus dedos produzia doces e melancólicas melodias.
Sua voz afinada juntava-se às vozes das águas, do vento, das folhas que se balançavam suavemente como numa dança repleta de encantamento.
Depois, deitou-se sobre a areia fina que formava a prainha do rio e ali ficou como a desentorpecer o corpo e contemplar o céu distante.
Após o descanso, em meio aos seus cânticos, encheu alguns cântaros com a água amiga e regressou à sua pedra-prisão.
Brux acompanhou todos os movimentos da pequena náiade sem que ela suspeitasse estar sendo observada por olhos tão poderosos e especiais.
Dizem que jamais estamos absolutamente sozinhos. Onde quer que nos encontremos sempre alguém nos vê e por isso devemos cuidar muito bem do que fazemos.
Durante todo o tempo em que a Lua deixou-se contemplar em toda sua nudez, Brux acompanhou a saída e o regresso da pequena náiade em seu ritual de música, banho, canto e transporte de águas para sua moradia.
Por que ela deixou-se prender? Era um ente, tinha poderes também porque então a prisão voluntária?
Alguns dias depois sempre ao comando da maior feiticeira de todos os tempos, Selene ou Lua como é mais conhecida, Brux começaria a desvendar os segredos que envolvem os seres com suas teias pegajosas.
Quantas vezes tivemos notícias sobre romances inverossímeis entre entes mitológicos e seres humanos?
Os deuses gregos eram mestres em disfarçarem-se de humanos quando se apaixonavam pelos mortais. Ou mesmo um amor entre entes da mesma natureza, mas vivendo em  mundos distantes como o grão de areia e a estrela, imortalizados na canção popular.
Quando a Lua começou a esconder-se lentamente como uma linda mulher nua a cobrir-se para dormir, Brux viu surgir um jovem pescador que, na maior naturalidade, colocou seus pertences sobre a margem, despiu-se e mergulhou nas águas inquietas e borbulhantes que se abriram acolhedoras para receberem o jovem amante que vinha ao encontro do ser de sua paixão.
Era assim...
Durante a Lua Minguante o pescador surgia para seu banho energizante e, na lua Nova, quando a treva cobria a mata, os namorados encontravam-se e se amavam sob as estrelas cúmplices ou as nuvens que, protetoras, mantinham-se em alerta e, ao menor sinal de perigo, providenciavam uma chuva torrencial para que os jovens tivessem tempo de esconderem-se dos olhares maldosos.
Mas certa vez o pescador decidiu que entraria no esconderijo de sua amada onde permaneceria para sempre! A vida não fazia mais sentido para ele num mundo onde ninguém seria capaz de entender um segredo daquele teor, onde a revelação da verdade o transformaria em um louco num hospital qualquer, seria ridicularizado, desprezado pelos seus e excomungado pela igreja.
Então para que continuara aqui?
Brux entendeu seu papel naquela história. Era hora de entrar em ação. Sabia que, se tal fato ocorresse, a jovem ninfa seria severamente punida pelos Entes da Floresta e o jovem seria conduzido a um labirinto sem volta porque a vida era sagrada e a ninguém era dado o direito de dispor-se dela.
Era uma dádiva, uma herança divina e quem ousasse jogar fora tal doação ficaria preso a sofrimentos atrozes, presa de monstros implacáveis que se compraziam em devorar as forças mentais, o pensamento, o equilíbrio do desafiante. Era o Inferno de Dante, o poeta inconformado com a morte de sua musa.
Brux apressou-se na tomada de decisões. Curioso... ela sempre era convocada para ajudar na resolução de casos de amor, mas por sua vez, vivia tão só...
Traçou um plano audacioso, mas, já acostumada ao ritmo dos grandes desafios, acelerou o processo do pensamento produtivo e deu início a sua nova aventura.
Cá entre nós, as Feiticeiras sabem como ninguém, usar a magia com precisão, no momento certo. Jamais desperdiçam a energia-reserva muito bem guardada para as eventuais emergências.
Buscou em seu alforje um livro tão minúsculo que cabia folgadamente na palma da mão fechada! Acomodou-o aberto num ponto estratégico do seu Posto de Observação, concentrando agora o magnetismo de seu olhar penetrante na mente do Pescador que caiu numa espécie de transe, de torpor, bastante comum aos mortais, em regiões de grande concentração energética como ali. Os três Reinos da Natureza em profusão, os elementais, entre outros, contra apenas um representante do Reino Hominal... ah! Muito fácil para Brux usar de toda sua magia.
Força dos astros, força da Terra e de todos os elementais numa potencialização extraordinária emprestavam à Brux um ar de Sacerdotisa que, serena, manipula os variados tipos de energia ao seu dispor, ao redor de si, em caráter de prontidão para servir.
O Pescador cai em sono profundo.
Brux passeia pela região encantada de seus sonhos e, na maior naturalidade, dá movimento ao pequeno livro e o pescador vê as águas do rio transformadas em páginas e mais páginas que passam diante de seus olhos como se alguém as manuseasse, mas um detalhe o intrigava: o livro não continha palavras, figuras, nada! Como podia ser aquilo? Um livro totalmente em branco...
De repente, da Pedra-Fonte, a pequena ninfa surge e passeia sobre as águas, quer dizer, sobre as páginas do livro líquido.
São deveras interessantes as mensagens dos sonhos... intrínsecas, mágicas, como se a instigar-nos o despertar para outras situações que nos parecem impossíveis, intocáveis, mas que, na verdade, estão ao alcance da nossa mão o tempo todo bastando um pouco de boa vontade da nossa parte.
Brux prossegue com seu plano. Até onde iria a capacidade do campo imagético daquele ser? “Os mistérios entre o céu e a terra” do grande dramaturgo inglês, materializavam-se ali naquele momento. Realmente... o que sabemos nós, os simples mortais, sobre tudo isso?   Nossas preocupações cotidianas, construídas muitas das vezes com banalidades, futilidades tais que não nos sobra tempo para pensarmos, ainda que por alguns instantes, em quanta beleza, quantas mensagens, ensinamentos profundos em meio a tudo que nos cerca.
Mas voltemos à narrativa.
A ninfa deixou as águas por um momento, aproximou-se do seu amado e deitou-se sobre o seu corpo suavemente deixando-se ficar assim por alguns instantes como se fora um manto, um manto tecido com a delicadeza e ternura daqueles que amam.
Depois regressou à Pedra e de lá trouxe uma chave. Mas o curioso é que aquela chave, ao invés do modelo tradicional, tão comum para nós, possuía uma ponta que lembrava a ponta de um lápis.
Brux... Ao convocar o Pescador para o mundo dos mortais, ela o fez compreender tudo! Despertou-o para a materialização de sua própria história! Ao transferir seu sonho de amor para o papel consegue a chave para adentrar o Reino Encantado de sua amada Ninfa e viver com ela a mais bela realidade de amor.
A magia do saber transforma um simples lápis numa poderosa e infalível varinha de condão que dá ao seu possuidor poderes que os mortais acreditam tratar-se apenas de mera imaginação... Será?
Consigo antever o sorriso enigmático da minha grande e inseparável Feiticeira amiga, já de volta ao seu solitário casarão, na esperança de vê-la retornar trazendo consigo mais uma de suas encantadoras histórias de amor...

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Causos



                                            

Papai descendia de família grande, boa de conversa que era só.
Nos fins de semana, na roça, quando a maior parte do povo estava em casa, a gente se reunia para uma prosa e daquelas boas em que o riso rola fácil.
Certa vez ele viu-se a braços com uma situação hilária e difícil de fugir e, como eu era sua acompanhante, posso, como ninguém, narrar o episódio.
Nós chegamos à estação rodoviária e quando íamos comprar a passagem, uma figura saída sabe Deus de onde, acenando ruidosamente, nos fez parar. Papai me olhou de soslaio e fez:
- Hummm...
Aproximou-se a criatura e num abraço cheio de gordura, limpando a boca com as costas da mão, acariciava os cabelos, o rosto, a camisa de papai e bem alto, a voz estridente, repetia:
- Essemenino, ocê é fi’ de Dita, né mes’?
- Sou.
- Ai, meu Deuso... ai, meu Deuso, fi’ de Dita! Benzo Deuso, meu fio.
E desenhava o sinal da cruz na testa de papai que fazia um esforço sobre-humano para manter-se sério.
- Obrigado.
- Mas ocê é quem mesmo? É Zinh’, né não?
- Não, senhora.
- É Meque?
- Também não.
- Será Genisso?
- Não.
- É quem?
- É Dirceu, Dona Aninha.
- Dirceu?! Ai, meu Deuso, ai, meu Deuso... Ocê não é aquele que mora no Ri’?
- Eu mesmo.
- Dispois escreve o endereço, quem sabe um dia eu possa aparecer por lá, pra u’a semaninha...
Papai arrumou um pigarro que nem sei de onde veio.
- Dona Aninha, eu...
- Peraí um cadinh’... Ô Joaaaaaaaaana... corre cá, menina!
Vem a Joana correndo, o sapato alto, de salto torto quase saído do pé, suada, cabelo todo emaranhado, chega e toda esbaforida reclama:
- Ô, mãe, você sabe que não posso correr, tô incomodada...
- Larga mão de bobage e fala mais Dirceu, o fi’ de Dita, o que mora no Ri’, tá lembrada não?
E a filha estende a mão desajeitada num cumprimento frouxo, como quem não está a par de nada, e talvez nem mesmo se lembrasse de quem era a Dita que a mãe tanto repetia.
- E a mocinha é quem, Dirceu?
-É minha filha.
- Xéeente! Se passasse por mim na rua, era capaz de eu nem conhecer por causo de que eu vi ocê, pela premera vez, ocê era desse tamanin’ e fazia um gesto como a definir uma caixa de sapatos. E lá vinha a mão engordurada para o abraço afetuoso...
- Dona Aninha, a senhora me dá licença porque o nosso ônibus já encostou.
- Ocê tá indo pra onde, Dirceu?
- Pra casa de mamãe.
- Menino, não é que eu mais Joana tamo indo pra aquelas bandas também? É capaz mesmo de eu até dar u’a chegadin’ em casa de comadre Dita, pra um cafezin’ com mistura, hein, Joana?

E eu nunca vi uma viagem de quarenta minutos parecer tão longa!