segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Silêncios


Jamais me ocorrera falar sobre um tema tão profundo como esse.

Trabalhei alguns anos com uma Classe Especial de Deficientes Auditivos, CE DA, como é comum nas Escolas Municipais, o uso de si
glas.

Ali conheci vários tipos de silêncio...

Tinha o silêncio de raiva, de busca, de tristeza, de angústia, de medo, de ausência...

O surdo, ao contrário do que se pensa, é extremamente ruidoso.
Seus ruídos caracterizam o seu estar no mundo, quais o arrastar dos pés, como a busca do equilíbrio corporal; o arrastar de mesas e cadeiras, os gritinhos constantes, monossílabos que significam frases completas; os palavrões muito bem articulados e pronunciados com raiva; ah, tem também a expressão burro! reproduzindo o tratamento recebido pelas pessoas bem próximas a eles.

Mas o fato gritante no dia a dia como parte dessa comunidade, são os múltiplos silêncios que eles são capazes de fazer.

Curioso é a capacidade que o professor comprometido com esse trabalho, com essa troca, tem, de entender, decifrar o significado dessas mensagens ali contidas, encerradas.

Muitas vezes, chega-se em casa com a mente em quase total exaustão, pela energia liberada nessa troca.

Sempre aprendi a respeitar a eloquência desses silêncios e ao final de algum tempo eu sabia exatamente o significado de cada um, de cada expressão, de cada olhar ou a ausência dele, a lágrima que teimava em não rolar.

Períodos difíceis, mas de grande aprendizado para mim.

Pedras brutas que aprendi a lapidar transformando-as em pedras preciosas ao meu coração.

Lembro-me que gostaria de aprender a ler em Braille, mas acabei aprendendo a ler trechos de uma linguagem especial, feita de silêncios, gritinhos, explosões de raiva ou de ternura, que ficaria impressa para sempre na minha memória afetiva.

CE DA
EM Professor Castro Rebello

Professora Dirce Sales

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Maria



Uma nota bastaria
para eu compor,
Maria,
a melodia que
expressasse o Amor
que ainda não sabemos
e as orações
que ainda
não dissemos,
oh, Mãe de todos nós!

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Amigos


Amigos, presente de Deus em nossas vidas!
E com que emoção e carinho os guardamos...
Ainda que distantes durante anos,
ao nos encontrarmos, quanta festa no coração!
Explicar esse segredo, a química
 que existe entre todos nós  é impossível! 
No entanto a gente sabe o sabor exato
que este prazer nos traz,                              
por sermos o que somos,
como somos na íntegra,
e sermos aceitos uns pelos outros,
sem julgamentos ou imposições;
e nos sabermos juntos e felizes simplesmente,
 como uma flor, um animalzinho de estimação,
um conto de fadas ou um pequeno verso;
 e com a alma repleta de bons desejos
uns para com os outros, vibrando na mesma
emoção e sintonia, como uma canção inesquecível
que compomos a várias mãos e cantamos emocionados,
ao sabor de Milton Nascimento:
“Amigo é coisa pra se guardar
debaixo de sete chaves...”
Feliz Ano Novo para todos nós!



terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Caleidoscópio

                              - Vinícius -
                          
- Tenho medo do escuro, dizia ele constantemente.
- E por que, Vinícius?
- Tem monstros. Muitos...
- E quando a noite chega, o que você faz?
- Só durmo com a luz acesa.
- Se faltar luz?
- Eu cubro a cabeça!
- Aí fica mais escuro ainda... Sabe, Vinícius, eu tenho uma ideia que talvez possa ajudá-lo a vencer esse medo.
- O que é?!
- Toda vez que vier o medo do escuro, pense nos cegos.
- Pra quê, professora?
- Porque quando anoitece, você pode acender uma lâmpada ou uma vela para afastar os seus monstros e fantasmas, mas e eles?
Vinícius me olhou como se me visse pela primeira vez e se foi.
Era o recesso de julho.
Algum tempo depois, ao retornarmos às aulas, ele aproximou seu rosto do meu e disse com um ar de cumplicidade:
- Perdi o medo do escuro!

Eu ainda tenho os meus próprios medos, mas quando me lembro do meu ex-aluno e da minha receita tão simples e tão eficaz para ele, vou me esquecendo deles por aí...

domingo, 8 de novembro de 2015

Pousada


Meu coração é uma casa de portas abertas
Onde de quando em quando,
Pedem pouso e prosa
A Saudade e a Poesia.
E ali, ambas tão displicentes,
Em canteiros diversos
Semeiam versos em flor,
Sendo ou não, primavera.
E a pousada então
É só luz e alegria
Porque essas musas são
Mensageiras do Amor!

sábado, 31 de outubro de 2015

Comparações poéticas



                                                 Para Madalena Schmid
Quem não te conhece,
nem te imagina na intimidade:
 misto de mulher e de menina,
num pequeno corpo,
que de frágil fez-se robusto
ante aos embates da vida.
Se te comparasse a uma flor,
seria esta, a margarida!
por ser vibrante, alegre,
colorida e simples o bastante
para nascer no campo e
não perder a singularidade
na correria louca

das grandes cidades.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Fado apaixonado


Se tu soubesses
ler em meus olhos
esses segredos,
tão bem guardados,
no coração...

Talvez ouvisses, ai!
o que te dizem, ai!
esses meus versos
tão repletos de paixão!


domingo, 27 de setembro de 2015

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Zotro



Há alguns anos, ainda na ativa, fui cedida como professora substituta para reger uma terceira série do primeiro segmento, numa escola próxima a de origem, um termo bastante comum entre os profissionais da Educação, no município do Rio.
Era uma classe extremamente indisciplinada, com suas dificuldades naturais e um número considerável de crianças que não sabiam ler, nem escrever, eram apenas copistas.
Comecei a dar tratos à mente, no sentido de ajudá-los a mudar aquele quadro humilhante que usa a rebeldia e a indisciplina como disfarce para que os professores e principalmente os colegas já alfabetizados, não “zoem” deles.
Um dos alunos, muito mimado e controlado pela mãe, que sequer o permitia brincar, para não sujar a blusa do uniforme - num branco impecável -  todos os dias, ao me ver chegar, já trazia entre dentes, a mesma queixa:
- Professora, olha os “zotro” me botando apelido... professora, olha os “zotro” passando a mão na minha camisa...
Certo dia, sob um calor escaldante, a sala sem um ventilador, porque eles mesmos quebraram a bendita peça, ao ouvir a voz do queixoso, eu levantei a cabeça e alteei a voz:
- Zotro! Zotro? Cadê você?
Ninguém entendeu nada e o silêncio foi estrondante.
O menino entendeu o recado e se calou.
No dia seguinte, na hora da chamada, eu fui nomeando a classe e no final, repeti a fala anterior:
- Zotro!
- Faltou! Gritou alguém.
- Obrigada.
- Quem é Zotro, professora?
- É um menino que faz tudo errado, sabe? Ele bate na cabeça do colega, bota o pé na frente para o outro cair, bota chiclete no cabelo das meninas, rasga o caderno dos colegas, quebra o lápis, o ventilador...  Mas ele nunca é punido porque a gente não consegue vê-lo!
- A gente podia fazer um retrato do Zotro, né, professora?
- Boa ideia! Amanhã eu providencio o material e todo mundo vai ajudar na tarefa.
No dia seguinte, peguei uma folha conhecida como 40 k, que é bem extensa, convoquei o menorzinho da turma e pedi a ele que se deitasse sobre a folha estendida no chão. Outras crianças se revezavam contornando o corpinho do colega, até completar a silhueta.
Depois eles foram enfeitando o bonequinho com boné, óculos, corações, estrelinhas, relógio, tudo com muito capricho e muito colorido.
Quando o desenho ficou pronto, imitando o capricho das crianças, eu escrevi embaixo: ZOTRO.
Zotro passou a ser um personagem muito especial para aquela 3ª série e o menino queixoso, óbvio, transformou-se.
Alguns meses depois, fui transferida para outra unidade e senti falta da minha turma indisciplinada, que aprendera a importância da interatividade.
No mês de outubro recebi um telefonema do diretor da escola referida, dizendo que a turma me convidara para madrinha de uma solenidade de final de ano.

Pena que Zotro não pode comparecer...

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Hóspedes


Quando minhas filhas eram pequenas, foi morar em nossa casa uma outra menina, que não sei se caberia dizer que fosse “arteira”, ou bagunceira, como queiram, mas sempre era a responsável pelas pequenas faltas cometidas pelas filhotinhas.
- Mãe, quebraram um copo.
- Quem foi?
- Não fui eu não, mãe. – dizia uma.
- Nem eu! Defendia-se a outra.
- Ah, tá! Já sei quem foi.
- Quem?! Perguntaram as duas, ao mesmo tempo.
- Foi a Petrusca. Cadê ela?
- Petrusca, mãe?!
- É, crianças. Vocês não sabiam que mudou-se aqui pra casa uma menina da idade de vocês e é danada pra quebrar louças?!
Elas riam o bom rir das crianças quando recebem a brincadeira, no lugar da bronca.
E assim a vida prosseguia...
Quando os colegas vinham brincar em casa, e esqueciam alguma lâmpada acesa eu alteava a voz:
- Petrusca! Você esqueceu a luz acesa!
Os colegas achavam graça do meu jeito de ser e riam.
Bom, as meninas cresceram, casaram-se e se foram.
Fiquei eu apenas, na casa despovoada dos risos, brincadeiras e algumas broncas, de vez em quando.
Petrusca? Apesar de nunca mais ter aparecido nem para uma visita, continua por aí, para aliviar a culpa das crianças.
Talvez quando as minhas meninas tiverem os seus próprios filhos, abriguem a menina Petrusca ao invés de brigarem com a crianças, que outra coisa não quer querem, senão brincar.
Um dia desses encontrei um dos meninos que brincava lá em casa, já um rapaz, que num largo sorriso, foi logo adiantando que sabia notícia das meninas, pelas redes sociais.
- E você, perguntou ele.
- Vou bem, obrigada.
- E a Petrusca?
- Você lembra?!
- Claro! Não só lembro, como conto aos amigos mais chegados sobre ela.
E ele nem sabia que lá em casa também moravam, Ariosto, Avínia, Tenor e Brux, respectivamente, um gato, uma coruja, um sapinho cantor e uma bruxinha, e quando as visitas chegavam eles se escondiam dentro dos cadernos, dos livros ou no bolso do meu avental.
Bom, dá pra ver que não sou uma pessoa muito comum, muito igual aos demais...  talvez seja por isso que quase não recebo visitas em casa, apesar de ter bons amigos.
Talvez as pessoas estejam muito ocupadas com seus múltiplos afazeres, afinal, a vida moderna exige muito das pessoas e a televisão, exige muito mais ainda.


domingo, 6 de setembro de 2015

O livro de Brux


“Hoje, na 3ª árvore, à direita na entrada do bosque.”
É sempre essa a atitude da minha velha amiga. Ela nunca pergunta se posso, ela determina. E lá vou eu.
Misteriosa em tudo que faz e em si mesma, com seu olhar de luares e uma elegância e silêncio felinos, Brux não precisa muito para me convencer a estar onde ela precisa.
De pé, sem mover um músculo, olha para a majestosa palmeira que agita as folhas suavemente cedendo a carícia do vento.
A capacidade de silenciar em Brux transcende. Seu silêncio nos convida a uma viagem sideral, onde é possível ouvir Bilac em sua conversa com as estrelas.
E não quebra o silêncio, apenas o transforma numa fala, suave como uma canção.
- Impressionante a força deste vegetal...
- Uma pena que tão pouca gente saiba valorizar. Mas a que devo a honra de sua visita?
- Alguns projetos.
- Se eu puder ser útil em alguma coisa, pode contar comigo.
- Tenho um projeto de contação de histórias para um público bem diversificado.
- Você como contadora de histórias?!
- Não.
- Então quem?
- O livro, ora. Disse ela na maior naturalidade do mundo.
- Mas Brux, como um livro contaria histórias?
- Ora, você  anda esquecida dos inúmeros recursos do teatro?
- Claro que não. Bom, mas como o projeto é seu então, cabe a mim aguardar as diretrizes.
Brux olhou-me sem pressa.
- Amanhã nos falamos.
Do mesmo modo que chegou, partiu. E eu fiquei imaginando, tentando decifrar como funcionaria o projeto da minha querida amiga.
Quando dei por mim estava envolvida com papel cartão, cartolina, tesoura, cola, figurinhas, purpurina...
- Meu Deus, será que vai dar certo?
- Vai.
Olhei em volta, mas ela não se deixou ver.
Preparei um livro quase da minha altura, coloquei alças para que dar-lhe mobilidade e fui consultar o espelho.
Ridícula! Foi essa a minha impressão imediata.                                             Mas à medida que ia folheando o grande livro pendurado nos meus ombros, comecei a gostar da ideia...
Escolhi uma história muito antiga, bem conhecida das crianças e dos adultos, que fala sobre rejeição às diferenças, sobre a angústia da grande busca dos seus pares e da grande alegria ao final desse encontro  que nos remete ao nosso eu real e nos permite ver-nos refletidos num espelho diferente, bem diferente do habitual.
Que história é essa, afinal?
Ora, e a velha história do Patinho Feio, que na verdade, eu mesma, nunca pensara sob esse viés.
As ilustrações iam surgindo de forma suave, como surge os textos de quem está habituado a escrever com atenção e prazer, e fui aos poucos tornando viva cada página do grande livro. Gostei do resultado! A sensação do ridículo havia desaparecido e agora eu aguardava Brux com uma certa ansiedade.
Sobre a mesa da sala, o envelope com o selo em forma de patinha de gato, era Ariosto, o charmoso gatinho da minha amiga.
“Estarei na plateia.”
Brux...
Bem, resolvidos os trâmites comuns, chegou o dia da estreia!
Crianças entre sete e mais de setenta e sete anos aguardavam o Livro Falante.
- Ai, meu Deus!
- Não pense. Faça!
- Por que você não se mostra para eu me sentir um pouco mais segura?
- Construímos nossa segurança acreditando em nós mesmos.
Entrei lentamente no palco à meia luz e deixei que o grande livro fosse interagindo com o público, antes de começar a contar a sua história.
- Sabe, crianças? Nós, os livros, somos entes vivos! Precisamos muito do cuidado de vocês para que nossa viagem acompanhe o tempo. Essa história que eu vou contar agora, por exemplo, foi escrita há muitos séculos, na Dinamarca, um país que fica lá na Europa, por Hans Christian Andersen. 
- E cadê ele? Perguntou um menino na primeira fila.        
- Ah, ele precisou mudar-se para uma estrela, sabe aquela que aparece logo que a noite vai chegando?
- Sei!
- Então, a casa dele é lá agora.
- Por que? Perguntou outro.
E diante das perguntas que foram surgindo, o livro falante ganhava vida e eu ia sentindo mais segurança em interpretar o projeto da minha amiga que próxima a porta de entrada, olhava para mim com seu olhar de luares.


sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Eucaliptal



Porque eu fosse pequena e leve, seguia no colo de Antonia, a moça que trabalhava onde eu morava.

Carregava-me sobre os ombros, numa alegria contagiante e boa, para passar o dia em sua casa, uma construção simples, com paredes caiadas, branquinhas, branquinhas feito nuvens de maio, em meio a um formoso eucaliptal, no sul da incomparável Minas Gerais.

Após o lauto café, cujo aroma percorria a casa toda, com direito a milho cozido e bolo de fubá fresquinho, feito no fogão de lenha, nós íamos para o terreiro e Antonia buscava as árvores jovens, portanto mais baixas e flexíveis. Ia envergando o vegetal, até que o topo ficasse junto de nós.

- Segura na ponta, bem firme, e solta o corpo. Deixa a árvore brincar com você. Confia nela.

E como a árvore tivesse boa maleabilidade, eu subia e voltava ao solo, tocando-o apenas com a ponta do pé.

E sentindo a energia que fluía do vegetal e da própria Antonia, com sua alegria boa, brincava feliz, como se subisse e descesse em ondas que se delineavam lindamente aos meus olhos de criança.

As pessoas simples às vezes passam muito rapidamente nas nossas vidas, mas como a nota de fundo de um bom perfume, ficam impressas em nossa memória afetiva para sempre.

Hoje, possivelmente a minha Antonia já seja uma estrela, ou more em alguma delas... e se nas estrelas também se plantam eucaliptos, eu gostaria de visitá-la um dia, para que junto a um desses troncos energéticos a gente pudesse espalhar as lembranças pelo chão e rir o bom riso de quem aprendeu a viver ao natural.


sábado, 15 de agosto de 2015

Preferência nacional


Quem é o pretinho gostoso
que o brasileiro adora?

É bem vindo em todo lugar
e a qualquer hora.

Quem é o pretinho gostoso,
me diga lá, afinal!

É o cafezinho cheiroso
e tradicional!
 - Vai um café?

sábado, 8 de agosto de 2015

O pregador e a dona da boate



Entre ambos uma grande distância, naturalmente.
Ela o respeitava, mas sem veneração.
Eram amigos há longos anos, desde o período do velho e bom ginásio.
Tomaram rumos diferentes ao término do segundo grau.
Ele, mudou-se, seguiu o caminho doutrinário produzindo belas palestras, uma vida regrada, muito estudo, trabalho e pregações nos templos locais e em outras cidades também.
Ela, mulher da noite, das festas e luzes da ribalta, tornou-se proprietária de uma boate.
Num desses acasos da vida, chuva intensa na estrada, manobra mal calculada joga o carro do pregador ribanceira abaixo deixando-o numa situação muito embaraçosa.
Ela viu o acidente, parou a caminhonete e desceu a pirambeira para prestar os primeiros socorros.
Era impulsiva, não media esforços para ajudar a quem quer que fosse, principalmente em situações de risco.
Tornara-se uma mulher forte, musculatura definida e muito ágil.
Ao reconhecer o velho amigo, não titubeou:
- Vou abraçar você, meu velho, mas não se preocupe porque não passa pela cabeça seduzi-lo, viu? Falou sem ocultar a irreverência muito própria do seu jeito de ser.
- Não estou em condições de ser seduzido, minha boa amiga. Jamais poderei pagar esse bem que você está me fazendo agora.
- Reze por mim quando tiver um tempo, porque eu não sou muito boa com essas coisas de reza, você sabe.
- Cada um de nós tem a sua maneira de oração, Catarina.
- Sou caso perdido. Fique quieto agora porque preciso carregar você.
E assim dizendo, ela joga o franzino corpo de seu velho amigo sobre o ombro e sobe com sua preciosa carga o terreno em declive. Foi difícil atingirem a estrada devido o tempo ruim, o solo escorregadio, mas havia tanta determinação e boa vontade na atitude daquela mulher, que o universo conspirou favoravelmente, como se mãos invisíveis os apoiassem.
Demétrio quebrara o pé e Catarina colocou-o no banco de sua caminhonete sem grande dificuldade.
- Você não vai ficar constrangido em chegar no hospital ao meu lado, vai?
- Posso me constranger se tiver que entrar no seu colo, Catarina.
- Sinto muito, meu velho, mas se não tiver outro jeito, é assim mesmo que você vai entrar. E se alguém fizer alguma graça, eu quebro a cara do sujeito ou da sujeita. Disse ela num tom decidido.
- Não precisa agredir ninguém, minha amiga.
- Não tenho pendores pra santidade, Demétrio, sou impulsiva e muitas vezes, explosiva também, principalmente diante de certas coisas que não concordo. Mas agora fique quieto um pouquinho que vou tentar deixar você o mais confortável possível.
E assim dizendo, pegou um cachecol de lã, que mantinha sempre no porta luvas, enrolou o pé contundido do amigo, o acomodando-o o melhor que pôde, partiu para o hospital, distante dali cerca de duas horas, provavelmente, mas que tomaria mais tempo por causa da chuva.
- Sabe, Demétrio, nunca pensei que algum dia da minha vida, eu pudesse ouvir de alguém que uma pecadora ajudasse um santo, e no entanto, hoje, sou protagonista de uma história dessas...
- Não sou santo, Catarina. Sou apenas um servidor do Cristo, como qualquer um de nós poderá ser, se assim o desejar.
- Ah, você pode não ser santo, mas vive socorrendo os outros, pregando a palavra, levando uma vida absolutamente regrada, enquanto eu...
- No entanto, você me socorreu hoje! Demonstrando com isso, que também pode ser uma servidora de Jesus.
- Servidora de Jesus, eu?! Você deve estar com febre, meu velho, disse ela encostando o dorso da mão na testa do amigo.
- Não estou com febre não.
Chegaram ao hospital finalmente e Catarina, vendo a falta de estrutura local, não pensou duas vezes: tomou o amigo no colo e levou-o sem o menor esforço até a sala de atendimento.
Permanecera do lado de fora para fumar. Não tinha muita paciência para esperar e o cigarro, na sua concepção, ajudava a distrair a mente. Foi tudo muito demorado mesmo, mas findo o atendimento, Catarina levou seu amigo de volta ao hotel onde ele se hospedaria, bem próximo a sua boate.
Ao chegarem ela desceu e perguntou se havia uma cadeira de rodas para o seu amigo ficar mais confortável.
O funcionário informou que a única disponível estava quebrada e ela, olhando com um ar de riso para o amigo, brincou:
- Acho que os seus amigos lá de cima estão conspirando pra você andar de colo, meu velho.
- Catarina, você não tem jeito!
- Avisei que sou caso perdido...
- Nem sei como retribuir a tanta ajuda, minha querida amiga.
- Demétrio, pode parar com esse chororô, senão vai me amolecer e eu tenho que ficar bem forte pra dar uma força a mais, se for preciso. Amanhã eu volto. Qualquer coisa liga, está certo?
- Deus lhe pague.
Catarina saiu e Demétrio ficou refletindo sobre tudo que se passara e no quanto temos que nos libertar dos julgamentos e preconceitos cristalizados em nossa alma há milênios. Lembrou-se da frase de Catarina: nunca pensei que uma pecadora pudesse socorrer um santo... Não, ele não pretendia santidades para si, mas no fundo sentia que determinados grupos permaneciam naturalmente, em diferentes patamares. Estava envergonhado e ao mesmo tempo agradecido demais a Deus por permitir-lhe um aprendizado como aquele, de uma forma tão inesperada.
Dia seguinte, bem cedinho, lá estava Catarina a esperar por ele.
- Bom dia, meu amigo! Conseguiu dormir um pouco?
- Sim. E você?
- Eu nunca tenho problemas para dormir de dia, já que meu trabalho é noturno, mas descansei. Pedi um reboque para o seu carro e tenho mecânicos de confiança, se você quiser, é claro!
- Obrigado, Catarina! Viu como você é uma boa servidora?
- Não vai querer me converter agora, Demétrio...
- Não. Só mostrar que todos nós temos importância para o Senhor.
- Vamos tomar café?
- Vamos.
E saíram os dois amigos. Ele apoiado em seu braço o que a obrigava a caminhar devagarinhp, acompanhando o ritmo lento do seu velho amigo, que lhe devia, sem que ela pudesse imaginar, uma grande reforma íntima. Catarina não só o retirara do abismo, mas removera também um pesado e incômodo sentimento do seu coração: o de preocupar-se excessivamente com julgamentos.
O melhor da vida, sem dúvida, é sermos nós mesmos.






sexta-feira, 31 de julho de 2015

O mapa do tesouro


O menino seguia pé ante-pé, escondendo algo atrás do corpo quando foi surpreendido por sua irmã.
- O que você está escondendo aí, Leo?
- Nada, Jú!
- Então mostre a mão.
- Qual?
- Primeiro, a esquerda.
- Tá aqui. E exibe a mão vazia.
- Agora, a direita.
- Aqui. E repete o gesto.
- Agora mostre as duas.
- Só se você adivinhar o que eu achei.
- Hmmm... chocolate!
- Você só pensa em comer... Não!
- Figurinhas.
- Não.
- Insetos.
- Não
- Moedas.
- Não.
- Então fala logo! Não sou boa em adivinhações.
- É um mapa. Diz ele abaixando o tom de voz.
- Um mapa geográfico?
- Não.
- Um mapa das ruas da cidade?
- Não.
- Que mapa é esse, garoto?
- Um mapa do tesouro!
- Mapa do tesouro? Ah, não acredito!
- Pois então veja!
E ele mostra um papel envelhecido com marcas, setas quantidade de passos, caveiras, tudo aquilo que contém um mapa do tesouro, é claro!                              
E eles constatam que estão no local apontado pelo mapa e avistam uma grande caixa coberta por um belo xale colorido.
- Olha! Achei o tesouro! Tô rico! Rico! E assim dizendo, ele puxa o xale rapidamente deixando a grande caixa a mostra.
- Cuidado, Leo!
- Cuidado com o quê? Se você está com medo, pode ir. Eu fico sozinho.
- Não. Vou ficar com você.
Ele aproxima-se da caixa e abre a tampa decido. Mas... encontrou outra caixa! E outra, mais outra, e aquilo o deixou muito irritado!
- Ei! Que brincadeira é essa?! Fala olhando em todas as direções.
- Vamos voltar.
- Não! Vou até o fim. Não pedi nada! Achei o mapa, e agora ele é meu! e o tesouro também!
E vai abrindo todas as caixas até atingir a menor delas que está fechada bem fechadinha.  Ele pega a caixinha com as duas mãos e a sacode com força. Há alguma dentro! Faz um barulho considerável.
- Deixa eu abrir pra você, Leo.
- Toma.
E Júlia abre a caixa, um tanto temerosa.
- Um pacote dourado! O que será que tem aí dentro?
- Abre logo isso, Jú. To curioso...
- Um livro?!
- Acho que é um caderno.

Eles abrem o caderno ao mesmo tempo, tamanha a ansiedade.
Na primeira página, em negrito, a seguinte mensagem:

“Parabéns! Você acaba de encontrar um grande tesouro! Se quiser saber mais sobre ele, vai até a página 5.”        

Os irmãos, ansiosos, e com a curiosidade natural da juventude, correm os dedos até atingirem a página indicada.

“Esse tesouro vale mais que toda a prata, todo ouro e todo o dinheiro desse mundo! Mas para que você o receba, há uma condição. Mais informações na página 10.”

- Já estou ficando irritado.
- Vamos esquecer isso, Leonardo.
- Não. Vou continuar.

 “Para receber esse tesouro, você deverá dividi-lo com todas as pessoas que se interessarem por ele. Saiba como na página 15.”

- Ah, não! Se eu achei o tesouro sozinho, ele é só meu! Não vou dividir nada!
- Então vamos embora, mano.
- Já disse que não! Se viemos até aqui, vamos até o fim. E abrem a tal página reveladora...

“Legal! Você chegou até aqui e breve vai tornar-se muito, muito rico. Na última página há um envelope e dentro dele encontra-se um pequeno pacote, dobrado como um leque. Você deve abri-lo com todo cuidado!”

Os irmãos vão até a última página e ali encontram o envelope e ao abrirem o pacotinho surpreendem-se com o que encontram:


E


S

P

E

R

A

N

T

O

- Esperanto?! O que é isso, Jú?
- É um idioma, Leo. Vovô fala essa língua e sempre quis me ensinar, mas eu nunca me interessei.
- Vamos mostrar isso pra ele então?
- Tenho certeza que ele vai ficar muito feliz. Vamos.

E saem os dois irmãos com o caderno encantado, envolvido no papel e dentro da caixinha, para surpreenderem o avô.

Quem será que desenhou aquele mapa?