domingo, 27 de setembro de 2015

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Zotro



Há alguns anos, ainda na ativa, fui cedida como professora substituta para reger uma terceira série do primeiro segmento, numa escola próxima a de origem, um termo bastante comum entre os profissionais da Educação, no município do Rio.
Era uma classe extremamente indisciplinada, com suas dificuldades naturais e um número considerável de crianças que não sabiam ler, nem escrever, eram apenas copistas.
Comecei a dar tratos à mente, no sentido de ajudá-los a mudar aquele quadro humilhante que usa a rebeldia e a indisciplina como disfarce para que os professores e principalmente os colegas já alfabetizados, não “zoem” deles.
Um dos alunos, muito mimado e controlado pela mãe, que sequer o permitia brincar, para não sujar a blusa do uniforme - num branco impecável -  todos os dias, ao me ver chegar, já trazia entre dentes, a mesma queixa:
- Professora, olha os “zotro” me botando apelido... professora, olha os “zotro” passando a mão na minha camisa...
Certo dia, sob um calor escaldante, a sala sem um ventilador, porque eles mesmos quebraram a bendita peça, ao ouvir a voz do queixoso, eu levantei a cabeça e alteei a voz:
- Zotro! Zotro? Cadê você?
Ninguém entendeu nada e o silêncio foi estrondante.
O menino entendeu o recado e se calou.
No dia seguinte, na hora da chamada, eu fui nomeando a classe e no final, repeti a fala anterior:
- Zotro!
- Faltou! Gritou alguém.
- Obrigada.
- Quem é Zotro, professora?
- É um menino que faz tudo errado, sabe? Ele bate na cabeça do colega, bota o pé na frente para o outro cair, bota chiclete no cabelo das meninas, rasga o caderno dos colegas, quebra o lápis, o ventilador...  Mas ele nunca é punido porque a gente não consegue vê-lo!
- A gente podia fazer um retrato do Zotro, né, professora?
- Boa ideia! Amanhã eu providencio o material e todo mundo vai ajudar na tarefa.
No dia seguinte, peguei uma folha conhecida como 40 k, que é bem extensa, convoquei o menorzinho da turma e pedi a ele que se deitasse sobre a folha estendida no chão. Outras crianças se revezavam contornando o corpinho do colega, até completar a silhueta.
Depois eles foram enfeitando o bonequinho com boné, óculos, corações, estrelinhas, relógio, tudo com muito capricho e muito colorido.
Quando o desenho ficou pronto, imitando o capricho das crianças, eu escrevi embaixo: ZOTRO.
Zotro passou a ser um personagem muito especial para aquela 3ª série e o menino queixoso, óbvio, transformou-se.
Alguns meses depois, fui transferida para outra unidade e senti falta da minha turma indisciplinada, que aprendera a importância da interatividade.
No mês de outubro recebi um telefonema do diretor da escola referida, dizendo que a turma me convidara para madrinha de uma solenidade de final de ano.

Pena que Zotro não pode comparecer...

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Hóspedes


Quando minhas filhas eram pequenas, foi morar em nossa casa uma outra menina, que não sei se caberia dizer que fosse “arteira”, ou bagunceira, como queiram, mas sempre era a responsável pelas pequenas faltas cometidas pelas filhotinhas.
- Mãe, quebraram um copo.
- Quem foi?
- Não fui eu não, mãe. – dizia uma.
- Nem eu! Defendia-se a outra.
- Ah, tá! Já sei quem foi.
- Quem?! Perguntaram as duas, ao mesmo tempo.
- Foi a Petrusca. Cadê ela?
- Petrusca, mãe?!
- É, crianças. Vocês não sabiam que mudou-se aqui pra casa uma menina da idade de vocês e é danada pra quebrar louças?!
Elas riam o bom rir das crianças quando recebem a brincadeira, no lugar da bronca.
E assim a vida prosseguia...
Quando os colegas vinham brincar em casa, e esqueciam alguma lâmpada acesa eu alteava a voz:
- Petrusca! Você esqueceu a luz acesa!
Os colegas achavam graça do meu jeito de ser e riam.
Bom, as meninas cresceram, casaram-se e se foram.
Fiquei eu apenas, na casa despovoada dos risos, brincadeiras e algumas broncas, de vez em quando.
Petrusca? Apesar de nunca mais ter aparecido nem para uma visita, continua por aí, para aliviar a culpa das crianças.
Talvez quando as minhas meninas tiverem os seus próprios filhos, abriguem a menina Petrusca ao invés de brigarem com a crianças, que outra coisa não quer querem, senão brincar.
Um dia desses encontrei um dos meninos que brincava lá em casa, já um rapaz, que num largo sorriso, foi logo adiantando que sabia notícia das meninas, pelas redes sociais.
- E você, perguntou ele.
- Vou bem, obrigada.
- E a Petrusca?
- Você lembra?!
- Claro! Não só lembro, como conto aos amigos mais chegados sobre ela.
E ele nem sabia que lá em casa também moravam, Ariosto, Avínia, Tenor e Brux, respectivamente, um gato, uma coruja, um sapinho cantor e uma bruxinha, e quando as visitas chegavam eles se escondiam dentro dos cadernos, dos livros ou no bolso do meu avental.
Bom, dá pra ver que não sou uma pessoa muito comum, muito igual aos demais...  talvez seja por isso que quase não recebo visitas em casa, apesar de ter bons amigos.
Talvez as pessoas estejam muito ocupadas com seus múltiplos afazeres, afinal, a vida moderna exige muito das pessoas e a televisão, exige muito mais ainda.


domingo, 6 de setembro de 2015

O livro de Brux


“Hoje, na 3ª árvore, à direita na entrada do bosque.”
É sempre essa a atitude da minha velha amiga. Ela nunca pergunta se posso, ela determina. E lá vou eu.
Misteriosa em tudo que faz e em si mesma, com seu olhar de luares e uma elegância e silêncio felinos, Brux não precisa muito para me convencer a estar onde ela precisa.
De pé, sem mover um músculo, olha para a majestosa palmeira que agita as folhas suavemente cedendo a carícia do vento.
A capacidade de silenciar em Brux transcende. Seu silêncio nos convida a uma viagem sideral, onde é possível ouvir Bilac em sua conversa com as estrelas.
E não quebra o silêncio, apenas o transforma numa fala, suave como uma canção.
- Impressionante a força deste vegetal...
- Uma pena que tão pouca gente saiba valorizar. Mas a que devo a honra de sua visita?
- Alguns projetos.
- Se eu puder ser útil em alguma coisa, pode contar comigo.
- Tenho um projeto de contação de histórias para um público bem diversificado.
- Você como contadora de histórias?!
- Não.
- Então quem?
- O livro, ora. Disse ela na maior naturalidade do mundo.
- Mas Brux, como um livro contaria histórias?
- Ora, você  anda esquecida dos inúmeros recursos do teatro?
- Claro que não. Bom, mas como o projeto é seu então, cabe a mim aguardar as diretrizes.
Brux olhou-me sem pressa.
- Amanhã nos falamos.
Do mesmo modo que chegou, partiu. E eu fiquei imaginando, tentando decifrar como funcionaria o projeto da minha querida amiga.
Quando dei por mim estava envolvida com papel cartão, cartolina, tesoura, cola, figurinhas, purpurina...
- Meu Deus, será que vai dar certo?
- Vai.
Olhei em volta, mas ela não se deixou ver.
Preparei um livro quase da minha altura, coloquei alças para que dar-lhe mobilidade e fui consultar o espelho.
Ridícula! Foi essa a minha impressão imediata.                                             Mas à medida que ia folheando o grande livro pendurado nos meus ombros, comecei a gostar da ideia...
Escolhi uma história muito antiga, bem conhecida das crianças e dos adultos, que fala sobre rejeição às diferenças, sobre a angústia da grande busca dos seus pares e da grande alegria ao final desse encontro  que nos remete ao nosso eu real e nos permite ver-nos refletidos num espelho diferente, bem diferente do habitual.
Que história é essa, afinal?
Ora, e a velha história do Patinho Feio, que na verdade, eu mesma, nunca pensara sob esse viés.
As ilustrações iam surgindo de forma suave, como surge os textos de quem está habituado a escrever com atenção e prazer, e fui aos poucos tornando viva cada página do grande livro. Gostei do resultado! A sensação do ridículo havia desaparecido e agora eu aguardava Brux com uma certa ansiedade.
Sobre a mesa da sala, o envelope com o selo em forma de patinha de gato, era Ariosto, o charmoso gatinho da minha amiga.
“Estarei na plateia.”
Brux...
Bem, resolvidos os trâmites comuns, chegou o dia da estreia!
Crianças entre sete e mais de setenta e sete anos aguardavam o Livro Falante.
- Ai, meu Deus!
- Não pense. Faça!
- Por que você não se mostra para eu me sentir um pouco mais segura?
- Construímos nossa segurança acreditando em nós mesmos.
Entrei lentamente no palco à meia luz e deixei que o grande livro fosse interagindo com o público, antes de começar a contar a sua história.
- Sabe, crianças? Nós, os livros, somos entes vivos! Precisamos muito do cuidado de vocês para que nossa viagem acompanhe o tempo. Essa história que eu vou contar agora, por exemplo, foi escrita há muitos séculos, na Dinamarca, um país que fica lá na Europa, por Hans Christian Andersen. 
- E cadê ele? Perguntou um menino na primeira fila.        
- Ah, ele precisou mudar-se para uma estrela, sabe aquela que aparece logo que a noite vai chegando?
- Sei!
- Então, a casa dele é lá agora.
- Por que? Perguntou outro.
E diante das perguntas que foram surgindo, o livro falante ganhava vida e eu ia sentindo mais segurança em interpretar o projeto da minha amiga que próxima a porta de entrada, olhava para mim com seu olhar de luares.