- Sabia que teu pai já tomou a bênção a maluco?
Alfinetou de forma sagaz, minha mãe, no intuito de
ridicularizar a figura paterna.
- Conta aí, pai.
E papai, sem se fazer de rogado, puxa a cadeira, cruza
a perna, acende um cigarro, e bom narrador que sempre foi, sem pressa, desfia o
seu rosário de lembranças.
“ Mamãe tinha por mania mandar os filhos fazer recado
pra ela. Fazer recado era levar e trazer notícias de alguém. E nunca faltava a merenda,
que ela fazia questão de mandar.
Dessa vez era para uma comadre sua, que morava mais
distante e pra ir num pé e voltar no outro, como rezava o costume, a gente era
obrigado a ir a cavalo ou de condução.
Quituteira de mão cheia, mamãe preparava tudo com muito
gosto, fazia o embrulho bem apertado e finalizava com uma toalhinha de prato
quadriculada, que era pra ficar bem atado na cela, sem risco de a gente deixar
cair.
Naquela época, lá pelos meus doze, treze anos mais ou menos,
o povo contava que por aquelas bandas vagava Nenzinha, uma moça que perdera a
razão depois da morte de seu único filho.
Eu, depois de ouvir as muitas recomendações e rezas de
mamãe, montei o cavalo e parti pra casa de madrinha Bertha, que, por acaso, era
madrinha de meu irmão caçula, mas em casa, os padrinhos de um eram de todos. E
éramos dez irmãos...
A estrada, em certos trechos, era ornamentada nas
laterais por cercas vivas feitas por um tipo de planta que se trançava e dessa
forma impedia a fuga de alguns animais das fazendas vizinhas e também o olhar
curioso dos que seguiam caminho afora.
Antes da curva que indicava o limite da casa de
madrinha, feito um corisco, veio o pensamento que eu, inutilmente, tentava
evitar:
Já pensou se Nenzinha aparece por aqui? Eu aqui,
sozinho, faço o quê?
Dizem que pensar atrai tudo que a gente não quer e logo
depois da curva, feito uma assombração, um bicho acuado, com um grito de
arrepiar até a alma, surge a figura temida!
Os cabelos eriçados, a roupa maior que o corpo, a face maltratada,
mãos e unhas enegrecidas pela poeira da estrada, fez o cavalo refugar e eu,
impelido pelo medo de cair da montaria, apeei às pressas e, frente a frente com
Nenzinha, o coração disparado pelo susto, meio que nem sem saber como, a voz
saindo mais do estômago que da garganta, gritei:
- Abeeeença!
Ela sorriu e se foi. Desapareceu mato adentro e eu segui
o resto do caminho a pé, puxando a montaria pela rédea, porque faltou força pra
subir no lombo do animal.”
Assim era meu pai. Uma figura ímpar. Um proseador de
primeira. Que talvez, sem saber, tenha deixado em mim o gosto da prosa e da
cantoria.