domingo, 17 de dezembro de 2017

Kafiguratai


- Tá vendo a dureza que leva a tua velha avó? É isso que dá não poder estudar pra ser gente na vida...
- Mas vó, eu não conheço ninguém mais gente do que você!
- Não vem querendo me engambelar não, porque te conheço muito bem! Vai estudar. Es-tu-dar, tá ouvindo? Tu vai ser doutor de qualquer jeito.
- Eu prefiro te ajudar no trabalho com vendas, vó. Sou bom nas contas.
- Larga de ser besta! Eu dou as ordens aqui.

E ele enfiava-se embaixo da barraca de feira onde a avó trabalhava duro, de sol a sol, para sustentar a casa e seu grande sonho em vê-lo formado.

Ali, oculto pela saia da barraca e observando a estampa floral do longo vestido daquela mulher determinada que também cumpria o papel de pai e mãe, o nosso personagem tentava concentrar-se nos livros que ela fazia questão de ter e manter ao seu alcance como se fossem escudeiros, a protegê-lo do mundo.

Porém ele mais sonhava, que lia; mais fazia planos que estudava e sorria ao ouvi-la cantarolar velhas melodias em catalão, origem de seus antepassados.

E a avó não só usava esse idioma em suas orações, como também para enrolar um pouquinho a freguesia e  para xingar aqueles fregueses chatos, que repetiam as perguntinhas cretinas de sempre, mas não levavam nada!

Ele se sacodia todo de tanto rir do que a avó dizia, isso sem que ninguém suspeitasse, mas ela abaixando o corpo, enfiava a cabeça sob a barraca e dizia-lhe muito séria:

- Tampa o ouvido, moleque! Preste atenção nos livros!

Até que havia um certo esforço de sua parte, mas quem gostava dos livros era ela, não ele! O que fazer? Obedecer, claro! Não lhe restava outra alternativa...

Então, formou-se, doutorou-se e decidiu tornar-se escritor também. Mas não o fazia por amor aos livros ou aos leitores. Seu objetivo era vender. Talvez para realizar o velho sonho que acalentara, em ajudar a avó, sempre às voltas com seus legumes e frutas e dificuldades, naquela barraca de feira.

Não se submetia às correções naturais ou aos aconselhamentos dos profissionais mais experientes nesse mister.

Agia como uma espécie de desforra: do mesmo jeito que fora obrigado a abrir a memória para armazenar os conteúdos enfadonhos e sem nenhum sabor dos velhos livros, fazia exatamente o mesmo em relação a eles.

Apesar de não ser surdo, ouvia apenas a si mesmo, ao seu próprio ego.

Até que um dia, aborrecido com tudo, com todos, até mesmo com Deus porque lhe tomara a avó que ele tanto amava, abriu um dos livros que escrevera e desabafou:

- Pra que a gente precisa de tanto livro?! Diacho!

E então aconteceu algo inesperado:
Ao folhear o livro, num desencanto total, viu uma palavra estranha e curiosa que ele nunca havia escrito e seu espanto foi tal, que ele a pronunciou em voz alta:
KAFIGURATAI?! Que raio de palavra é essa? KAFIGURATAI...

Pronto! O livro o engoliu! Tornou-se uma espécie de prisão estranha e absurda, silenciosa e fria, e ele começou a sentir um medo insuportável...
Chamar quem? Quem poderia escutá-lo? Sentia-se entre o ridículo e o ameaçado.

E as palavras criaram vida e começaram a acusá-lo, a virem de dedo em riste para cima dele, que, acuado, tentava em vão, proteger-se.

Aquilo era ridículo! Só podia ser um pesadelo, claro. E era um pesadelo, porque assim o decidira, até por uma questão de lógica, mas o pior é que ele não acordava e viu-se sob o açoite impiedoso de sua própria mofa em relação ao que fazia.

Por que a vida não podia ter sido diferente? Por que ele não pode ter uma infância como os demais? Ao menos um amiguinho para dividir as coisas de menino, as brincadeiras, as matinês... Bola de gude, pião de corda, pipa...

Não! Nunca pudera gozar dessas delícias, nem mesmo na hora do recreio, quando ele usava a cantina escolar como uma desculpa para sua inabilidade com os jogos, os folguedos, flertes tão naturais, tão comuns aos meninos e meninas naquela idade...

Sonhava em viajar, conhecer outros países, mas seus sonhos naufragavam em livros...

Vou virar editor! Vou usar esses malditos objetos de consumo, de enfeite na estante dos intelectuais, que fazem tanta questão de parecerem íntimos dos escritores, de saber de cor as suas ideias, tendências, estilo, etc, a meu favor! 
Ah, mas como aquilo tudo era abominável!


E ficava amargurando suas frustrações, enquanto durava aquela prisão.
“Se eu sair daqui vou jogar tudo pro alto e virar feirante, isso sim!”

Mas ao falar dessa maneira, sua memória infantil despertou e das nuvens carregadas que o vento empurrava com fúria incontrolável, anunciando a tempestade iminente, viu a barraca derrubada e as frutas, os legumes sendo levados pela enxurrada, absolutamente incontrolável pela mão humana e em meio ao pranto, ouviu a voz inconfundível de sua avó em seu sotaque irreprochável:


- Vai estudar, moleque! Es-tu-dar!

sábado, 2 de dezembro de 2017

A irmã estelar

“Chapéu pequeno,
 aba curtinha
 com três florinhas
 para enfeitar,
 molhadinhas de orvalho...
 colhidas no campo
 toda manhã.”

- É pra você, Nicole.
- Mas quem é você?
- Eu sou você!
- Queeeee?!

E Nicole acordou com um estirão no corpo. Crescera alguns centímetros. Olhou em torno, mas nada viu.
Arrumou suas coisas e foi para a escola.
Gostava de estudar, andar a pé, conversar e organizar os objetos ao seu gosto.
No caminho começou a cantarolar a música do sonho, e não é que lhe pareceu estar usando um chapéu mesmo?! Levou a mão à cabeça para certificar-se, olhou no espelho da lanchonete ao lado da escola e... nada!
Ela não via, mas sentia algo em sua cabeça, com longos e belos cabelos castanhos.
Bonita menina!

Quando entrou em sala, todos olharam para ela ao mesmo tempo e ouviu-se um coro de vozes: Como você está diferente hoje, Nicole!
A menina, disfarçadamente, levou a mão à cabeça, encolheu os ombros e sentou-se em sua cadeira.

Foi um dia muito especial aquele, mas ela não contou nada para ninguém, quer dizer, só pra Valentina.
Ué, mas se não contou pra ninguém, quem é Valentina então?
Ah, pois é... Valentina é sua boneca favorita! Ela havia ganhado algumas, mas aquela era especial!
Viera de muito, muito longe do Brasil.

Sua tia, que viajava constantemente pra tudo que era canto, ao chegar numa cidade de nome esquisito, que ela nunca conseguia guardar, mas sabia que ficava na França, se encantou pela boneca, que pela primeira vez na vida, viajou para outro lugar muito, muito distante do seu.

Decidiu chama-la de Valentina, em homenagem a sua valentia em viajar sozinha, dentro de uma mala escura e fria. “Se eu estivesse lá, você ia viajar no meu colinho!” dizia ela, abraçando a boneca de pano, que normalmente, amolda-se ao nosso corpo, quando a abraçamos.

Eu confesso que as bonecas de pano sempre foram as minhas preferidas! E o mais engraçado, é que quando a gente se dá conta, elas sabem tudo da nossa vida! Nunca entendi esse mistério...

Então Nicole chegou em casa e buscou logo a companhia de Valentina para dividir com ela o seu segredo.
Mas aí, deixa de ser segredo, não?
Nesse caso não, porque Nicole tinha certeza absoluta que Valentina nunca contaria nada pra ninguém! Nem mesmo pra outra boneca.

E a outra menina, a do sonho? Quem seria?
Desejou muito saber, mas o sono chegou dizendo que era hora de dormir e pronto! E como com o sono, ninguém pode, Nicole obedeceu, mas no fundo do coração, desejou muito saber da menina.

Ensinam os Mestres da Sabedoria, que ao desejarmos algo, do fundo do coração, nosso desejo se realiza, mas só se merecermos ou se o nosso desejo for para o nosso bem ou para o bem dos outros.

- Oiê!
- Oi! Que bom ver você outra vez!
- Vem comigo, mas para isso, use o presente que te dei.
- Mas eu não vejo!
- Ensinei como se faz para que ele se ajuste a nossa cabeça, não?
- Ah! A música?

E ela começou a cantarolar, num ritmo delicado e gostosinho a melodia do chapéu.

“Chapéu pequeno,
 aba curtinha
 com três florinhas
 para enfeitar,
 molhadinhas de orvalho...
 colhidas no campo
 toda manhã.”

- Nossa! Onde estamos?
- Nas estrelas.
- É tão lindo!    
- Os planetas também são. Tudo que Deus fez e continua fazendo, é muito lindo! Basta a gente acender a estrela do olhar para ver a beleza da criação.
Nicole estava tão impressionada com aquela realidade que se esqueceu completamente de perguntar à simpática amiga o seu nome e porquê ela fazia parte do seu sonho, mas lembrou-se de perguntar sobre o chapéu.
- É meu presente de aniversário.
- E como você sabe isso?
- Vou contar um segredo, Nicole. Os sonhos são mais curtos que a vida de uma borboleta e  cada explicação às perguntas, é tempo que se perde para novos saberes, descobertas e conhecimentos.
- Ah, então é por isso que as vezes a gente só vai entender um sonho, tempos depois?
- Também.
- E por que tem gente que não sonha?
- Na verdade essas pessoas não se lembram porque não dão importância aos sonhos, mas todos sonhamos.
- Até quem mora nas estrelas?
- Claro! Tudo e todos nós fazemos parte do sonho de Deus.
- Tão bonito isso que você falou!  sonho de Deus... Dá vontade até de escrever uma história contando algo sobre os sonhos de Deus!
- Muito bem! Mas agora é hora de voltarmos.
- Já?! Parece que foi tudo tão rápido.
- O tempo varia de acordo com o local que estejamos.
- Vou ver você outra vez, irmã?
- Amanhã, Nicole. Sou mesmo sua irmã.

No dia seguinte a menina levantou-se até mais cedo, sentia-se bem disposta e desejou escrever alguma coisa, que acreditava ser de grande importância, mas não conseguia lembrar-se exatamente do que.
O dia transcorreu normalmente, com seus cenários costumeiros, suas tramas dramáticas ou cômicas, mas Nicole parecia experimentar alguma coisa que transcendia a tudo aquilo.

Interessante o comportamento humano... Muda-se o foco, muda-se a atitude diante do cotidiano.
As cores ganham novas matizes, as pessoas tornam-se mais cordiais, tudo ganha uma leveza encantadora!

Nicole olhou-se no espelho e sorriu para o seu novo reflexo.
Pensou em cantarolar a música do chapéu, mas não querendo abusar do poder que ele lhe oferecia, decidiu desenhá-lo segundo os seus versos. E o desenho a agradou tanto, que ela decidiu colar a gravura na capa do seu caderno. Assim poderia ver o gracioso e mágico chapeuzinho, quando não pudesse ou melhor, não devesse usá-lo.
Mas o que ela náo esperava era o interesse de suas colegas pelo seu singelo trabalho...

- Ai, Nicole, que lindo! Onde você comprou?
- Não comprei. Eu fiz.
- Faz pra gente também?
- A gente paga você com a nossa mesada.
- Faz aí, faz?!

E a menina, sem esperar, viu em sua delicada arte, uma possível fonte de renda, que talvez a transformasse no futuro, em uma desenhista de chapéus... Será?
Bem, ela ainda não sabe nada sobre esse sonho, mas em breve saberá.

Colocou Valentina sobre a banqueta da penteadeira e contou tudo pra ela, em primeiro lugar, é claro! Depois falaria com a irmã estelar e finalmente, com seus pais sobre a novidade.

Deixaria os pais por último, porque sabia que eles poderiam não concordar, temendo que ela se descuidasse da escola, mas Nicole trazia na alma o gosto pelos estudos e com ele, a certeza que não correria esse risco.

Planejou o seguinte: se a irmã das estrelas... ei! Naquele exato momento brihou uma ideia muito maneira! Encontrara um nome certo para aquela irmã: Estela! Será que ela vai gostar?

“Chapéu pequeno,
 aba curtinha
 com três florinhas
 para enfeitar,
 molhadinhas de orvalho...
 colhidas no campo
 toda manhã.”

- Claro que gostei do nome que você escolheu pra mim, Nicole! E acho ótimo que desenvolva esse talento tão belo. Quanto mais você exercitar as mãos, melhor será o seu traço. Faça suas mãos dançarem para adquirirem leveza. Apenas duas observações:

Primeiro nunca deixe de sonhar; segundo... bem, você mesma deverá descobrir.
Estela se foi e Nicole, munida de papeis, lápis coloridos e muito talento, é claro, traçou dez chapéus quase iguais ao seu, mas sempre com uma nuance aqui, um detalhe ali, fazendo toda a diferença. Personificando o trabalho à cada uma das colegas.
Era esse o segundo conselho de Estela.

- Nicole, vem jantar.
- Já vou, mãe.

Então ela reuniu tudo que produzira e mais o seu próprio caderno e mostrou à família. Todos amaram a nova artista, que aproveitou  o ensejo para revelar sobre o novo projeto, que naturalmente, encontrou resistência dos pais pelo cuidado com estudos, Exatamente como ela previra.
Nicole venceu e, sem saber, começou a sonhar com o futuro.
           
                        “Nós somos do tecido de que são feitos nossos sonhos.”
                                                                        William Shakespeare


sábado, 4 de novembro de 2017

Buquê


Recebi de um amigo muito querido um buquê de flores.

E que mulher não se alegra ao ser lembrada com essas joias da natureza?

Mas o melhor desse presente é que posso levá-lo comigo aonde quer que eu vá.
E não se trata de flores artificiais, absolutamente!

São espécies raras, colhidas do sentimento e transformadas em palavras...
Pequenos contos que falam diretamente à minha alma cabocla, pela simplicidade que possuem.

Vieram de muito longe... do Japão. E o que é melhor, foram carinhosamente escritos na Língua Internacional Esperanto, que nos permite ouvir o cântico de cada povo em sua originalidade e essência.

Bukedo al vi (Um buquê para você), esse o título do charmoso livreto.

Ao amigo eu agradeço de coração, o gesto delicado e afirmo que no jardim da minha existência você será sempre uma tulipa. Uma tulipa negra, símbolo de elegância e sofisticação.


Muito obrigada!

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Gratidão


Luz que surgiu devagarinho,
em favor da nossa união.

Esperanto! representas
o sonho de amor
de um coração...

Zamenhof, alma nobre,
a nossa eterna gratidão.

domingo, 27 de agosto de 2017

Acalanto

Esse teu corpo lembra rede mansa,
que eu gosto tanto de me enroscar...
E a tua voz dizendo meu nome,
parece acalanto a me embalar...
E esse teu olhar – não sei não –
bonito como o sol na beira do mar,
é chama que me aquece o coração...

doidinho pra te amar!

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Recado


                                                         Ao amigo e parceiro musical
                                                         Kleber Matos
Amigo,
onde quer que estejas,
tomara que vejas o sol  e a lua!
E permaneça contigo
a mansa paz do existir.
Favor, logo assim que puderes,
envia pra gente
uma música boa...
- daquelas que as pessoas
não conseguem esquecer! -
porque muitas vezes, amigo, 
a música é prece em nosso viver.

domingo, 16 de julho de 2017

Solú


- Droga de vida! Por que tenho que ser tão limitado?
- Não fale assim, Solú! Deus fica triste.
- Meu nome não é esse.
- Eu sei, mas esse é um modo carinhoso que nós usamos para abreviar a palavra soluço.
- Ah, você fala isso porque não sabe o que é não poder correr, jogar bola, escalar...
- Um dia eu também fui muito limitada e hoje, voo.
- Isso é uma lei da natureza.
- Uma outra lei colocou asas em você também, Solú.
- Asas em mim?!
- Sim.
- Não vejo asa alguma.
- Que outro menino tem a habilidade de conversar com os animais como você?

Solú pensou um pouco e sorriu. Realmente, ele conseguia fazer isso e sem o menor esforço...

- Você tem razão, Borboleta Amarela.
- Obrigada. Tenho um amiguinho que está precisando de cuidados.
- Quem?
- O Peralta.
- Peralta? É um cachorrinho?
- Não. É um esquilo.
- Mas o que aconteceu com ele?
- Foi atropelado.
- Oh, coitadinho! Cadê ele?
- Venha, eu mostro o caminho.

E Borboleta Amarela, com seus voos baixos e curtinhos, foi indicando o caminho até o local onde gemia o esquilinho machucado.

Solú girou a cadeira de rodas e abaixando o corpo o máximo que pode, conseguiu pegar o animal, acomodando-o em seu colo.

- Vou cuidar de você.

Levou-o para casa e começou a cuidar dos ferimentos do amiguinho, mas o que ele não sabia é que o esquilo iria precisar de uma operação, e isso ele não estava habilitado a fazer.

Conversou com seu pai, que muito orgulhoso com a generosidade do filho, prometeu buscar ajuda.

Lembrou-se que a Faculdade de Veterinária oferecia um serviço gratuito nessa área e que servia como treinamento aos alunos nesta habilitação.

Feito o contato, Peralta foi transportado e a cirurgia, felizmente, muito bem sucedida.

O animalzinho passou a ser o amigo fiel de Solú, e como era segredo entre os dois, contava ao menino as mais incríveis histórias do reino dos animais!

É, porque uma coisa é a gente ouvir as narrativas tecidas pelos escritores, e outra muito mais incrível, eu diria até incomparável, é ouvir-se pela boca do próprio animal...

Solú sentia-se tão bem, intimamente, que nem se lembrava mais de suas limitações físicas. Chegava a afirmar que ele era um centauro moderno, só que sua metade-cavalo era a cadeira de rodas, uma raça estilizada, talvez.

Muito bom quando alguém nos ajuda a transformar nossa deficiência em eficiência.

                           O caso das minhocas

Peralta chegou meio agitado e pediu a Solú que o acompanhasse até um lote da quadra do quarteirão vizinho para ajudar um grupo de pequenos animais muito importantes para o solo, as plantas e o equilíbrio da cadeia alimentar: as minhocas.

De fato, elas estavam reunidas em grupo, para se auto-protegerem e todas falavam ao mesmo tempo.

- Calma, amiguinhas. Eu sugiro que elejam uma entre vocês, para falar pelo  grupo, assim fica mais fácil para eu compreender o que vocês querem.
- Fale você, Fininha.
- E por quê eu?
- Porque sua voz é alta.
       
E eu que nem imaginava que minhocas falassem, pensou o menino.

- Mas falamos sim, Solú. E lemos seus pensamentos também, como você pode constatar agora.
- Bom saber! Mas o que vocês querem de mim?
- Estamos perdendo nosso espaço. Vivemos sob o solo há milênios, mas precisamos da superfície também, e os homens estão acabando com todo nosso espaço! Cimentam tudo! Quando não é cimento é asfalto... E nós? Será o nosso fim?

Solú coçou a cabeça e prometeu pensar numa possível solução para um problema tão grave... Não é fácil lutar contra os homens. Eles são muito poderosos e não costumam ouvir as crianças...


- É bom que você não demore muito tempo pensando, porque corre o risco de não estarmos mais aqui, quando você voltar. – disse Fininha dramaticamente, enxugando uma lagriminha num lenço do tamanho de um confete.

Novamente Solú vai ao encontro de seu conselheiro-mor: seu pai.
No dia seguinte, volta ao grupo das minhocas e fala sobre a proposta paterna: um minhocário no jardim de casa.

O grupo pediu um tempo, confabulou e, finalmente, aceitou a oferta.

Munido da mola mestra da boa vontade e de grande habilidade manual, aquele pai amoroso, entre madeiras, telas, vidro, cola forte, pregos, serras e martelos, ergue o engenho que, uma vez repleto com a terra apropriada, seria o abrigo seguro para as minhoquinhas trabalhadeiras.

O grupo de Fininha foi transportado para o minhocário e sempre que pintava uma chance, Solú ia dar um dedinho de prosa com elas. Aprendeu tanta coisa, que vocês nem imaginam!

Na escola ele dava um show em termos de conhecimento sobre a vida animal.

- Como você sabe tanta coisa assim, Salviano? – pergunta a professora, curiosa com a desenvoltura do menino.
- Lendo, pesquisando e observando muito. Estou preparando a base das minhas futuras profissões, professora.
- Hmmm... e posso saber o que o senhor pretende ser no futuro? Profissões... veja só!
- Sim. Quero ser veterinário e escritor. E todas as minha histórias terão um diferencial: os animais vão falar.
- Mas isso nada tem de moderno. São fábulas e elas são muito antigas.
- Não são fábulas propriamente, porque nelas os animais conversam entre si e nas minhas histórias eles vão falar com os humanos. E vão falar de sua realidade mesmo, do seu dia a dia, e de como nós poderemos ajudá-los.
- Você tem animais em casa?
- Alguns.
- Exemplo?
- Um cachorro, dois gatos, um esquilo e algumas minhocas.
- Minhocas?! Arrrg.. que nojo! Reagiu a classe, sem que a professora repreendesse.
- Salviano, um esquilo é um animal silvestre e você não pode mantê-lo em cativeiro.
- Mas quem falou em cativeiro? Ele é livre e sai e volta quando bem quer. Esse esquilo foi atropelado na Trilha das Borboletas e eu o levei para casa a fim de cuidar dos seus ferimentos, mas vendo que o caso era mais complicado, pedi ajuda a meu pai que o levou para a Universidade onde foi operado. Retornou à natureza, mas não nos esquece, e, por isso, fica em nossa casa quando quer.

        Todos aplaudiram a atitude do colega e desejaram visitá-lo para conhecerem de perto aqueles animais.
        
        As crianças ficaram maravilhadas!

- Caramba! Muito maneiro! As minhocas fazem túneis o tempo todo. Parece que ficam dançando...
        
        E elas jamais poderão imaginar o que Fininha comentou com Solú...

- Por que as minhocas cavam tanto embaixo da terra?
- Elas ajudam o solo respirar, explica Solú.
- Engraçado...
- O que é engraçado, Mariana? Pergunta a professora, já imaginando a resposta da menina.
- Solo respirar... Solo não tem nariz!
- Então vamos preparar uma aula sobre os vários tipos de respiração que a natureza nos oferece. Responde a mestra, aproveitando o centro de interesse das crianças.
       
       Solú estava feliz. E a felicidade tem dessas coisas: ela é capaz de
       multiplicar-se ao infinito para ser distribuída a todos.





sábado, 24 de junho de 2017

Pedido


Guarda-me em silêncio
no teu peito, amigo!

Abriga-me no espaço
do teu nobre coração...

Ave de arribação que sou,
já sem forças pra voar.

domingo, 18 de junho de 2017

Pretensões

"Trago a pessoa amada
apenas em três dias,
de volta ao seu coração."

Me desculpe a ousadia,
mas será que Madame
perdeu a razão?!

Quem parte já não tem razões para ficar,
há muito o encanto se quebrou...
Melhor deixar tudo como está.
Diz o dito popular: o que passou, passou.

segunda-feira, 12 de junho de 2017

Dissonância

Eu, em

mi menor,

sou nota

dis-
   so-
      nan-
          te

ao coração

er-
  ran-
      te

que se faz

em dó.


sexta-feira, 26 de maio de 2017

A SétimaArte


Desde muito jovem fora fascinado pela chamada Sétima Arte. Tão logo tivesse uma chance, ei-lo em meio à sala de exibição dos grandes ou médios cinemas da cidade.

E o desvelo e seriedade com que acompanhava o desenrolar das histórias, que ganhavam aos poucos o movimento encantado dos rolos enormes a projetarem no telão os dramas, comédias, lendas, ficções ou quaisquer outros gêneros era tal, que chegava mesmo a intrigar, surpreender a quem o ouvisse em seu entusiasmo narrativo.

Era como se aquele universo fizesse parte de sua vida.

Uma tarde...

“Luzes! Câmera! Ação!”
“Aconchegue mais a moça ao seu corpo! Assim! Quero bastante realismo na próxima tomada!” Era a voz seca de um diretor, que atuava num humor daqueles...

Alguns segundos, e o nosso personagem não sabia sequer onde colocar as mãos, o raciocínio, a vergonha de sentir-se assim, totalmente exposto.

“Corta!”
“Isso tem que parecer o mais natural possível! Fui claro?!”

“Mas...”

“Não tenho tempo para argumentações.”

“Luzes! Câmera! Ação!”
“Beije a moça!”

”Mas como eu posso beijar uma desconhecida?!”

“Desconhecida? Eu?! Como ousa falar comigo assim? Uma atriz de fama internacional!”

“Perdoe-me, senhorita! Não quis ofendê-la! Aprecio demais a sua atuação e não perco um filme seu!”

“Falando assim eu posso até me apaixonar... Você é tão atraente...”

“Corta! Isso não está no script!”
“Silêncio!”
“Luzes! Câmera! Ação!”
“Beije a moça, já disse! Agora!”

“Mas eu não sou ator!”

“Corta! Cooorta!”

Inesperadamente ele volta-se para a tela e suplica a plenos pulmões:

“Socorro! Alguém me tire daqui, por favor!”

- E aí, amigo, posso ajudar em alguma coisa?

Era o lanterninha, que tocando de leve em seu ombro, num sorriso disfarçado, resmunga:

- Mas é cada uma que me aparece... além de dormir ainda sonha!”


sábado, 13 de maio de 2017

Mãos


Minha mãe tinha mãos quentes e fortes e orgulhava-se por conseguir abrir qualquer tipo de tampa.

Também dava-se à delicadeza do bordado em ponto cruz que fazia surgir a palavra ESPERANTO nos marcadores de livros ou desenhos variados nas toalhinhas de mão.

Gostava de mexer com a terra também e organizar tudo que lhe pertencia.

Pouco antes de morrer eu ainda brinquei com ela dizendo-lhe que precisava de sua força para abrir um pote de azeitonas para mim, e ela, entendendo a mensagem, levantou ambas as mãos num gesto simbólico que foi o último em sua passagem por aqui.

Não tive coragem de olhar o corpo de minha mãe.
Preferi guardar a última imagem de suas mãos, respondendo ao meu apelo.