- Tá vendo a dureza que
leva a tua velha avó? É isso que dá não poder estudar pra ser gente na vida...
- Mas vó, eu não conheço
ninguém mais gente do que você!
- Não vem querendo me
engambelar não, porque te conheço muito bem! Vai estudar. Es-tu-dar, tá
ouvindo? Tu vai ser doutor de qualquer jeito.
- Eu prefiro te ajudar no
trabalho com vendas, vó. Sou bom nas contas.
- Larga de ser besta! Eu
dou as ordens aqui.
E ele enfiava-se embaixo
da barraca de feira onde a avó trabalhava duro, de sol a sol, para sustentar a
casa e seu grande sonho em vê-lo formado.
Ali, oculto pela saia da
barraca e observando a estampa floral do longo vestido daquela mulher
determinada que também cumpria o papel de pai e mãe, o nosso personagem tentava
concentrar-se nos livros que ela fazia questão de ter e manter ao seu alcance
como se fossem escudeiros, a protegê-lo do mundo.
Porém ele mais sonhava,
que lia; mais fazia planos que estudava e sorria ao ouvi-la cantarolar velhas
melodias em catalão, origem de seus antepassados.
E a avó não só usava esse
idioma em suas orações, como também para enrolar um pouquinho a freguesia e para
xingar aqueles fregueses chatos, que repetiam as perguntinhas cretinas de sempre, mas não
levavam nada!
Ele se sacodia todo de tanto
rir do que a avó dizia, isso sem que ninguém suspeitasse, mas ela abaixando o corpo,
enfiava a cabeça sob a barraca e dizia-lhe muito séria:
- Tampa o ouvido, moleque!
Preste atenção nos livros!
Até que havia um certo esforço de sua parte,
mas quem gostava dos livros era ela, não ele! O que fazer? Obedecer, claro! Não
lhe restava outra alternativa...
Então, formou-se, doutorou-se e
decidiu tornar-se escritor também. Mas não o fazia por amor aos livros ou aos
leitores. Seu objetivo era vender. Talvez para realizar o velho sonho que acalentara,
em ajudar a avó, sempre às voltas com seus legumes e frutas e dificuldades, naquela
barraca de feira.
Não se submetia às
correções naturais ou aos aconselhamentos dos profissionais mais experientes
nesse mister.
Agia como uma espécie de desforra:
do mesmo jeito que fora obrigado a abrir a memória para armazenar os conteúdos
enfadonhos e sem nenhum sabor dos velhos livros, fazia exatamente o mesmo em
relação a eles.
Apesar de não ser surdo,
ouvia apenas a si mesmo, ao seu próprio ego.
Até que um dia, aborrecido
com tudo, com todos, até mesmo com Deus porque lhe tomara a avó que ele tanto
amava, abriu um dos livros que escrevera e desabafou:
- Pra que a gente precisa
de tanto livro?! Diacho!
E então aconteceu algo
inesperado:
Ao folhear o livro, num
desencanto total, viu uma palavra estranha e curiosa que ele nunca havia
escrito e seu espanto foi tal, que ele a pronunciou em voz alta:
KAFIGURATAI?! Que raio de
palavra é essa? KAFIGURATAI...
Pronto! O livro o
engoliu! Tornou-se uma espécie de prisão estranha e absurda, silenciosa e fria,
e ele começou a sentir um medo insuportável...
Chamar quem? Quem poderia
escutá-lo? Sentia-se entre o ridículo e o ameaçado.
E as palavras criaram vida
e começaram a acusá-lo, a virem de dedo em riste para cima dele, que, acuado,
tentava em vão, proteger-se.
Aquilo era ridículo! Só
podia ser um pesadelo, claro. E era um pesadelo, porque assim o decidira, até
por uma questão de lógica, mas o pior é que ele não acordava e viu-se sob o
açoite impiedoso de sua própria mofa em relação ao que fazia.
Por que a vida não podia
ter sido diferente? Por que ele não pode ter uma infância como os demais? Ao
menos um amiguinho para dividir as coisas de menino, as brincadeiras, as
matinês... Bola de gude, pião de corda, pipa...
Não! Nunca pudera gozar
dessas delícias, nem mesmo na hora do recreio, quando ele usava a cantina
escolar como uma desculpa para sua inabilidade com os jogos, os folguedos,
flertes tão naturais, tão comuns aos meninos e meninas naquela idade...
Sonhava em viajar,
conhecer outros países, mas seus sonhos naufragavam em livros...
Vou virar editor! Vou usar
esses malditos objetos de consumo, de enfeite na estante dos intelectuais, que
fazem tanta questão de parecerem íntimos dos escritores, de saber de cor as
suas ideias, tendências, estilo, etc, a meu favor!
Ah, mas como aquilo tudo era
abominável!
E ficava amargurando
suas frustrações, enquanto durava aquela prisão.
“Se eu sair daqui vou
jogar tudo pro alto e virar feirante, isso sim!”
Mas ao falar dessa
maneira, sua memória infantil despertou e das nuvens carregadas que o vento empurrava
com fúria incontrolável, anunciando a tempestade iminente, viu a barraca
derrubada e as frutas, os legumes sendo levados pela enxurrada, absolutamente
incontrolável pela mão humana e em meio ao pranto, ouviu a voz inconfundível de
sua avó em seu sotaque irreprochável:
- Vai estudar, moleque!
Es-tu-dar!