sábado, 25 de fevereiro de 2017

A Lagartinha rebelde



Lalá estava tão concentrada no seu audacioso projeto, que estremeceu ao ouvir aquela voz, que conhecia tão bem, repreendê-la:

- O que você pensa que está fazendo aí, Lalá?

- Um par de asas, Mãe Natureza.

- Quer ir contra as minhas Leis?

- Não, quero apenas voar.

- Você ainda não aprendeu a esperar que Tempo entregue em suas mãos o relógio que lhe cabe?

- Mas eu não tenho o direito de construir o que eu desejo?

- Sim, contudo há coisas que não se pode pretender adiantar. Primeiro você deverá cumprir o seu destino de lagarta. Seja obediente e no momento certo, Tempo lhe permitirá o voo.

Mas Lalá não queria saber de tanta espera. Ela estudara bastante sobre aerodinâmica, proporção, propriedade dos materiais, portanto, era capaz, sim, de construir as suas asas! Para que e porque esperar tanto, se ela sabia que estava pronta?

Na hora que Mãe Natureza visse tudo o que ela construira, e com perfeição, certamente aprovaria o seu projeto realizado com tanto empenho e capricho.

Estava cansada de sentir-se tão limitada! O máximo que conseguia fazer era subir numa árvore e ficar olhando o mundo lá de cima. Ah, que chatice!

Levou tudo que havia coletado para o interior da grande árvore, acendeu a lanterninha de vagalumes e deu-se a tecer, colar, trançar com tanto afinco que não se deu conta das horas.

Quando a madrugada acendeu o lampião no horizonte, Lalá começou a sentir uma tontura estranha. Lembrou-se então que ficara sem se alimentar e sem dormir! Bom, poderia dormir durante o dia, claro!

Mas Mãe Natureza começara muito mais cedo a sua ronda e ao observar o interior da árvore que hospedava as lagartinhas, flagrou Lalá dormindo sentada sobre a mesinha de refeições.

Sentou-se do lado de fora da grande árvore e ficou à espera daquela rebeldezinha inveterada, que ousava desafiá-la! E ela estava muito brava!

Lalá sentiu que algo não estava bem. Não se tratava dela apenas, mas algo além de si mesma. Decidiu sair da toca para averiguar e...

- Estou aguardando a sua explicação.

- Mãe, eu...

- O que é que tem você?!

- Eu só queria provar pra mim mesma e para você, que sou capaz de fazer algo por mim, por minha própria iniciativa.

- Os frutos nascem antes da florada?

- Não.

- Os pássaros abandonam no ninho os filhotes antes deles estarem prontos para voar?

- Não.

- O riacho muda a direção do seu curso quando bem quer?

- Não.

- E por que você pensa que pode sobrepor-se ao tempo?

- Estou cansada de ter um corpo limitado, que não acompanha o meu pensamento.

- Esqueceu-se que o destino de algumas lagartas é transformar-se em borboletas?

- Mas e se eu não for esse tipo de lagarta?

- Lalá...

- Desculpe, Mãe Natureza. Eu não queria magoar você.

- Não estou magoada.

- Não?!

- Estou enfurecida! Não gosto de ser desafiada dessa maneira.

- Me desculpe, por favor! Eu não quis desafiar você. Quis desafiar a mim mesma.

- Lalá, entenda uma coisa: as Leis Naturais têm o seu tempo certo para serem cumpridas.

Lalá estava envergonhada. Voltou para o interior da grande árvore e chorou. Deitou-se, enrodilhou-se e adormeceu.

No dia seguinte, sentiu uma vontade imensa de espreguiçar-se e era como se tivesse braços longos...

Deixou a árvore, mas não conseguia arrastar-se sobre o solo como antes.

Foi até a pequena fonte e mirou-se no espelho d’água... Inacreditável! Ela era agora, uma linda borboleta azul!

Estaria sonhando? Ah, certamente estaria sonhando.

- Lalá? Venha conosco! Junte-se ao seu grupo!

E Lalá viu passarem cruzando o ar, como um lindo balé, um grupo de delicadas borboletas tão azuis como ela. Experimentou as asas e lançou-se no espaço. Voava... Sim! Voava!
Mas em sonhos também voamos.

- Lalá!

E ao ouvir a voz de Mãe Natureza, que parecia sacudi-la de suas lutas contra si mesma, ela acelerou o voo e sorriu.

- Obrigada, Mãe Natureza! Obrigada!

sábado, 18 de fevereiro de 2017

Súplica-Petego



Senhor,
Mestre dos nossos corações,
Sustentai-nos nas horas
de solidão e de dor.

Senhor,
vossa presença luminosa,
vossa paz celestial
dai-nos sempre a nós.

Senhor,
segundo o conselho vosso,
num verso do Pai Nosso,
"seja feita a vontade de Deus."


Sinjoro,
Majstro de niaj koroj,
subtenu nin en la horoj
de l' soleco kaj dolor'.

Sinjoro,
vian ĉeeston helan,
vian pacon ĉielan
ĉiam donu al ni.

Sinjoro,
laŭ la konsilo via,
en verso de Patro Nia,
"plenumiĝu la volo de Di'."










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domingo, 5 de fevereiro de 2017

Cotidiano



                                                                                                              
Oito horas da manhã, o coletivo já com passageiros em pé, pela escassez de carros na linha em questão, e a jovem sentada no banco destinado aos idosos, gestantes ou deficientes, desvia o olhar pela janela para não encarar o velhinho que se posta justo ao seu lado.

Ele nada diz, apenas permanece de pé, ou tenta fazê-lo entre os solavancos e freadas bruscas do veículo em marcha acelerada.

Então a jovem decide fechar os olhos para não ter que encarar aquela realidade tão desagradável.

Até que voz justiceira se alteia pelo coletivo:

- Olha a consciência, galera! Na moral, dá lugar pro coroa aê, bacana! Não é favor não, brother, é lei! Sabe ler não? Ô raça! Tem a raça negra, a branca, a vermelha, a amarela, mas tem a raça ruim também.

Era uma moça toda tatuada, cabelos multicoloridos, cheia de piercings, meio 
que malvista e malquista pela própria geração que ela tão calorosamente defendia, que fazia valer o direito constitucional do idoso – aliás, essa palavra pesa mais que o passar dos anos e dos pecados cometidos ou pensados, nesta vida...  Ô língua!

E a jovem dos olhos desviados - que me perdoe Machado de Assis – levantou-se muito a contra gosto, e na primeira parada fez questão de descer vociferando e gesticulando, sob as vaias de alguns, que embora sejam contra, nada fazem para modificar certas situações, muito mais comuns do que se pensa, no cotidiano dos milhares de passageiros nos coletivos da nossa grande cidade.

Penso que a nossa justiceira merecia, se não os aplausos por sua nobre atitude, pelo menos um obrigado daquele que foi tão generosamente favorecido e defendido por ela... Ô povo!