domingo, 16 de julho de 2017

Solú


- Droga de vida! Por que tenho que ser tão limitado?
- Não fale assim, Solú! Deus fica triste.
- Meu nome não é esse.
- Eu sei, mas esse é um modo carinhoso que nós usamos para abreviar a palavra soluço.
- Ah, você fala isso porque não sabe o que é não poder correr, jogar bola, escalar...
- Um dia eu também fui muito limitada e hoje, voo.
- Isso é uma lei da natureza.
- Uma outra lei colocou asas em você também, Solú.
- Asas em mim?!
- Sim.
- Não vejo asa alguma.
- Que outro menino tem a habilidade de conversar com os animais como você?

Solú pensou um pouco e sorriu. Realmente, ele conseguia fazer isso e sem o menor esforço...

- Você tem razão, Borboleta Amarela.
- Obrigada. Tenho um amiguinho que está precisando de cuidados.
- Quem?
- O Peralta.
- Peralta? É um cachorrinho?
- Não. É um esquilo.
- Mas o que aconteceu com ele?
- Foi atropelado.
- Oh, coitadinho! Cadê ele?
- Venha, eu mostro o caminho.

E Borboleta Amarela, com seus voos baixos e curtinhos, foi indicando o caminho até o local onde gemia o esquilinho machucado.

Solú girou a cadeira de rodas e abaixando o corpo o máximo que pode, conseguiu pegar o animal, acomodando-o em seu colo.

- Vou cuidar de você.

Levou-o para casa e começou a cuidar dos ferimentos do amiguinho, mas o que ele não sabia é que o esquilo iria precisar de uma operação, e isso ele não estava habilitado a fazer.

Conversou com seu pai, que muito orgulhoso com a generosidade do filho, prometeu buscar ajuda.

Lembrou-se que a Faculdade de Veterinária oferecia um serviço gratuito nessa área e que servia como treinamento aos alunos nesta habilitação.

Feito o contato, Peralta foi transportado e a cirurgia, felizmente, muito bem sucedida.

O animalzinho passou a ser o amigo fiel de Solú, e como era segredo entre os dois, contava ao menino as mais incríveis histórias do reino dos animais!

É, porque uma coisa é a gente ouvir as narrativas tecidas pelos escritores, e outra muito mais incrível, eu diria até incomparável, é ouvir-se pela boca do próprio animal...

Solú sentia-se tão bem, intimamente, que nem se lembrava mais de suas limitações físicas. Chegava a afirmar que ele era um centauro moderno, só que sua metade-cavalo era a cadeira de rodas, uma raça estilizada, talvez.

Muito bom quando alguém nos ajuda a transformar nossa deficiência em eficiência.

                           O caso das minhocas

Peralta chegou meio agitado e pediu a Solú que o acompanhasse até um lote da quadra do quarteirão vizinho para ajudar um grupo de pequenos animais muito importantes para o solo, as plantas e o equilíbrio da cadeia alimentar: as minhocas.

De fato, elas estavam reunidas em grupo, para se auto-protegerem e todas falavam ao mesmo tempo.

- Calma, amiguinhas. Eu sugiro que elejam uma entre vocês, para falar pelo  grupo, assim fica mais fácil para eu compreender o que vocês querem.
- Fale você, Fininha.
- E por quê eu?
- Porque sua voz é alta.
       
E eu que nem imaginava que minhocas falassem, pensou o menino.

- Mas falamos sim, Solú. E lemos seus pensamentos também, como você pode constatar agora.
- Bom saber! Mas o que vocês querem de mim?
- Estamos perdendo nosso espaço. Vivemos sob o solo há milênios, mas precisamos da superfície também, e os homens estão acabando com todo nosso espaço! Cimentam tudo! Quando não é cimento é asfalto... E nós? Será o nosso fim?

Solú coçou a cabeça e prometeu pensar numa possível solução para um problema tão grave... Não é fácil lutar contra os homens. Eles são muito poderosos e não costumam ouvir as crianças...


- É bom que você não demore muito tempo pensando, porque corre o risco de não estarmos mais aqui, quando você voltar. – disse Fininha dramaticamente, enxugando uma lagriminha num lenço do tamanho de um confete.

Novamente Solú vai ao encontro de seu conselheiro-mor: seu pai.
No dia seguinte, volta ao grupo das minhocas e fala sobre a proposta paterna: um minhocário no jardim de casa.

O grupo pediu um tempo, confabulou e, finalmente, aceitou a oferta.

Munido da mola mestra da boa vontade e de grande habilidade manual, aquele pai amoroso, entre madeiras, telas, vidro, cola forte, pregos, serras e martelos, ergue o engenho que, uma vez repleto com a terra apropriada, seria o abrigo seguro para as minhoquinhas trabalhadeiras.

O grupo de Fininha foi transportado para o minhocário e sempre que pintava uma chance, Solú ia dar um dedinho de prosa com elas. Aprendeu tanta coisa, que vocês nem imaginam!

Na escola ele dava um show em termos de conhecimento sobre a vida animal.

- Como você sabe tanta coisa assim, Salviano? – pergunta a professora, curiosa com a desenvoltura do menino.
- Lendo, pesquisando e observando muito. Estou preparando a base das minhas futuras profissões, professora.
- Hmmm... e posso saber o que o senhor pretende ser no futuro? Profissões... veja só!
- Sim. Quero ser veterinário e escritor. E todas as minha histórias terão um diferencial: os animais vão falar.
- Mas isso nada tem de moderno. São fábulas e elas são muito antigas.
- Não são fábulas propriamente, porque nelas os animais conversam entre si e nas minhas histórias eles vão falar com os humanos. E vão falar de sua realidade mesmo, do seu dia a dia, e de como nós poderemos ajudá-los.
- Você tem animais em casa?
- Alguns.
- Exemplo?
- Um cachorro, dois gatos, um esquilo e algumas minhocas.
- Minhocas?! Arrrg.. que nojo! Reagiu a classe, sem que a professora repreendesse.
- Salviano, um esquilo é um animal silvestre e você não pode mantê-lo em cativeiro.
- Mas quem falou em cativeiro? Ele é livre e sai e volta quando bem quer. Esse esquilo foi atropelado na Trilha das Borboletas e eu o levei para casa a fim de cuidar dos seus ferimentos, mas vendo que o caso era mais complicado, pedi ajuda a meu pai que o levou para a Universidade onde foi operado. Retornou à natureza, mas não nos esquece, e, por isso, fica em nossa casa quando quer.

        Todos aplaudiram a atitude do colega e desejaram visitá-lo para conhecerem de perto aqueles animais.
        
        As crianças ficaram maravilhadas!

- Caramba! Muito maneiro! As minhocas fazem túneis o tempo todo. Parece que ficam dançando...
        
        E elas jamais poderão imaginar o que Fininha comentou com Solú...

- Por que as minhocas cavam tanto embaixo da terra?
- Elas ajudam o solo respirar, explica Solú.
- Engraçado...
- O que é engraçado, Mariana? Pergunta a professora, já imaginando a resposta da menina.
- Solo respirar... Solo não tem nariz!
- Então vamos preparar uma aula sobre os vários tipos de respiração que a natureza nos oferece. Responde a mestra, aproveitando o centro de interesse das crianças.
       
       Solú estava feliz. E a felicidade tem dessas coisas: ela é capaz de
       multiplicar-se ao infinito para ser distribuída a todos.