Sempre me relacionei bem com as palavras e sempre houve uma grande camaradagem entre a gente.
Uma espécie de acordo, de chave de casa, de idas e vindas sem cobranças.
As vezes, quando o sono se perdia não se sabe exatamente
onde, elas chegavam para me fazer companhia e teciam histórias das mais
variadas, convidavam personagens diversos, ora engraçados, ora tristonhos, ora
musicais, ora poéticos.
E minha função na madrugada era passar um café com alguma
mistura, como se diz no interior, e ouvir toda aquela prosa boa, que, a pedido
das palavras mesmo, eram anotadas por mim.
Leia para nós, elas me pediam, se fazendo de platéia a
rir ou chorar comigo até que o regresso inesperado de sono interrompesse a nossa reunião.
Hoje as palavras não aparecem com a mesma frequência de
antes ou chegam para uma visita de médico, alegando falta de tempo para ficarem
até mesmo para um café...
De vez em quando sinto vontade de sair a procurá-las, mas
prevalece a velha mania de respeitar a vontade alheia e permaneço onde estou.
Mas sinto saudade, confesso.
Aliás, saudade nunca se foi. É uma velha amiga que acabou
tornando-se uma dedicada cuidadora, principalmente quando percebe que insisto
em repetir que guardei alguma palavra, mas não sei exatamente onde...
Saudade é muito generosa. Aliás, ela me faz acreditar que
minha memória pode até dar alguns probleminhas, mas no que depender dela,
jamais se apagará.
Então, eu apóio a cabeça em seu ombro e divido com ela a
minha queixa:
Embora a tecnologia seja incrível, ela jamais substituirá
a presença dos nossos amores, nem mesmo das palavras que insistem em se afastar
de nós, sabia?
Mas eu estou aqui, diz ela num sorriso complacente.
Então começamos a nos lembrar de tanta coisa, de um jeito
tão descontraído, que nos demoramos em abrir a porta aos toques insistentes...
Eolha que surpresa boa! Não é que todas as palavras ausentes voltaram querendo
saber porque nós duas tanto ríamos.
Acho que descobri que quem
afugenta as palavras de nós são o mau humor e a queixa.
Mas vamos combinar que esses
dois são capazes de mandar embora até os amigos mais generosos, não?