segunda-feira, 8 de março de 2021

Eu e as palavras


                               

 Sempre me relacionei bem com as palavras e sempre houve uma grande camaradagem entre a gente.

Uma espécie de acordo, de chave de casa, de idas e vindas sem cobranças.

As vezes, quando o sono se perdia não se sabe exatamente onde, elas chegavam para me fazer companhia e teciam histórias das mais variadas, convidavam personagens diversos, ora engraçados, ora tristonhos, ora musicais, ora poéticos.

E minha função na madrugada era passar um café com alguma mistura, como se diz no interior, e ouvir toda aquela prosa boa, que, a pedido das palavras mesmo, eram anotadas por mim.

Leia para nós, elas me pediam, se fazendo de platéia a rir ou chorar comigo até que o regresso inesperado de sono  interrompesse a nossa reunião.

Hoje as palavras não aparecem com a mesma frequência de antes ou chegam para uma visita de médico, alegando falta de tempo para ficarem até mesmo para um café...

De vez em quando sinto vontade de sair a procurá-las, mas prevalece a velha mania de respeitar a vontade alheia e permaneço onde estou.

Mas sinto saudade, confesso.

Aliás, saudade nunca se foi. É uma velha amiga que acabou tornando-se uma dedicada cuidadora, principalmente quando percebe que insisto em repetir que guardei alguma palavra, mas não sei exatamente onde...

Saudade é muito generosa. Aliás, ela me faz acreditar que minha memória pode até dar alguns probleminhas, mas no que depender dela, jamais se apagará.

Então, eu apóio a cabeça em seu ombro e divido com ela a minha queixa:

Embora a tecnologia seja incrível, ela jamais substituirá a presença dos nossos amores, nem mesmo das palavras que insistem em se afastar de nós, sabia?

Mas eu estou aqui, diz ela num sorriso complacente.

Então começamos a nos lembrar de tanta coisa, de um jeito tão descontraído, que nos demoramos em abrir a porta aos toques insistentes... Eolha que surpresa boa! Não é que todas as palavras ausentes voltaram querendo saber porque nós duas tanto ríamos.

Acho que descobri que quem afugenta as palavras de nós são o mau humor e a queixa.

Mas vamos combinar que esses dois são capazes de mandar embora até os amigos mais generosos, não?