quarta-feira, 21 de abril de 2021

Mãos dadas

O tempo, esse artista incansável, já lhes tecera no rosto as rendas de costume, já lhes embranquecera os cabelos e lhes emprestara uma certa lentidão no caminhar, mas não conseguira tirar deles o hábito antigo das mãos dadas onde quer que estivessem: na igreja, no cinema, na varanda de casa, nas ruas da cidadezinha, como se afirmassem naquele gesto uma terna cumplicidade.

Até mesmo na antiga e tão elegante namoradeira para acompanharem a novela pelo rádio, as mãos se encontravam num idílio tão bonito...

Era assim o velho casal a quem as crianças, mesmo sem parentesco algum, lhes pediam a bênção.

Era também um tempo diferente, com serenatas pela noite, lua mansa no terreiro, muita conversa boa, recitais de poesia, brincadeiras de roda, banda de música no coreto da praça, fotos do lambe-lambe, carrocinha de algodão doce...

E nem era preciso ter festa. Bastava ser domingo.

Parece que nunca existiu um tempo assim, nem costumes tão singelos, mas eu que aqui estou ainda, estive lá, morei naquela cidade, e guardei no coração tanta lembrança boa que não poderia deixar de falar sobre isso, porque a mim me parece, que nos dias atuais é muito fora de moda, ou brega -se preferirem- demonstrar-se ternura e falar-se de coisas simples, como se tivéssemos a obrigação de nos tornarmos enciclopédias ambulantes.

 

terça-feira, 6 de abril de 2021

A visita

  O silêncio da madrugada foi quebrado por algumas suaves pancadinhas à porta.

Entre o temor e a curiosidade, venceu a segunda e ao abrir a porta fiquei sem saber o que fazer ou o que dizer.

Diante de mim, em pé, estava uma cópia de mim mesma!

Embora habituada à minha figura diante do espelho, senti uma estranheza ao me ver numa outra projeção, uma espécie de 3D, algo deveras surreal para mim, embora fora acostumada a ver e ouvir fatos e relatos em situações diversas e bem diferentes do comum.

Deveria convidá-la (ou convidar-me) a entrar?

Venceu a educação e num gesto cortês e uma voz que não me vinha da garganta eu a fiz (ou me fiz) entrar.

Não sabia o que dizer.

Estranho esse sentimento de ver-nos a nós mesmos e nos sentirmos tão pouco à vontade...

Deveria oferecer um café ou quem sabe fazer uma prece?

A visitante por sua vez, nada dizia, apenas me acompanhava nos mínimos gestos com um olhar indefinível.

Sempre lera bastante sobre o Eu superior o eu comum, mas seria aquele o meu Eu superior exteriorizado?

Descansei suavemente minha mão sobre a sua e simplesmente disse num suspiro: Desculpe-me a falta de jeito, mas você sou eu e não sei como acolher a mim mesma.

Talvez resida nisso os problemas conflitantes entre nós, simples mortais, o fato de não termos aprendido a acolher a nós mesmos, vermos as nossas imperfeições como algo natural nesse processo de aprendizagem, que é viver.

Quantas vezes fomos punidos por errarmos, quando o erro é parte integrante do acerto...

Por que nossos educadores deram a fatos tão simples uma complexidade tal que o medo nos calou a voz que deveria sair da garganta e ganhar todos os espaços?

Nossos olhos marejados e as mãos trêmulas, entrelaçadas com tanta ternura, desculpavam-se ao entendermos finalmente, que não precisávamos mais buscar tantos argumentos ou justificativas porque finalmente compreendemos o valor grandioso do eu em suas dimensões e suas relações com o outro, com Deus, porque o outro sou eu e ambos estamos no mesmo Deus que há em nós.