sexta-feira, 21 de março de 2014

Nhá Chica

                                                                                                       


O rio ainda é o mesmo, mas o olhar de Nhá Chica há muito perdeu o brilho e a capacidade de correr junto daquelas águas mansas e barrentas que tão bem conhecia .

Bastava um peixe pular das águas para ela bater palmas com as mãos abertas e o sorriso estampado no rosto amigo e bom daquelas pessoas que nasceram só para fazer o bem!

Nhá Chica, ribeirinha de nascença, ganhou até nome pomposo quando aportou nesse mundo: Francisca Maria Ribeiro do Nascimento, mas para os mais chegados, os de casa, era Nhá Chica do rio, mesmo...

Mãos maltratadas de mulher trabalhadeira que, embora não tenha domado muito bem o lápis e as letras, conseguiu escrever a vida de cada um, a história do lugar.

A pé, de canoa, a vau, em lombo de burro, de carroça, de carroceria, do jeito que desse, sob chuva ou sol a pino, madrugada ou dia alto, lá ia ela... O terço na mão, “mode dar segurança”, o “emborná” com os instrumentos de trabalho: o copo de alumínio, pra escutar as “andança” do corpo, a medalhinha de Nossa Senhora do Bom Parto pra botar em cima da barriga, “mode” a criança não subir. Quando sobe, a “muié” gorgita e “atrapaia” tudo, sabe moça?

Cobrar, nunca cobrou nada, mas aceitava os santinhos, as misturas, um cafezinho com rapadura, uma toalhinha, coisas assim, mas a paga que nunca podia faltar era o nascido de suas mãos chamá-la de madrinha. Ah, isso ela fazia questão!

E não tomasse a bênção não, que Nhá Chica fechava o tempo! “Ara! Já se viu?!”

Mais da metade da população ribeirinha era afilhada de Nhá Chica.
Mais da metade herdou a reza boa, as boas palavras, aquelas que livram de todo “má”, os de fora e os de dentro...

Como é isso, Nhá Chica?

Ah, os de fora vem dos outros, é mais fácil de combater, mas os de dentro, vem de nós mesmos, fia. Esse é o mais perigoso. Difiiiicil...

O resto Nosso Senhor toma conta. Carece ter medo não. Carece mais viver e entender que tudo que Deus faz é “bão.” Inté!

A canoa me espera e eu sigo pensando em tudo que vi e ouvi e na grande força que brota dessa gente que parece nutrir-se do rio, que incansável, prossegue no seu caminho de eterno servidor.


3 comentários:

  1. Parabéns por enriquecer a nossa literatura com mais um conto leve e típico de que emana a sabedoria do povo.

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  2. Bela pagho pri la vera, autentika religiemo: tiu, kiu floras en la animo de la popolo kaj efektivighas per agoj, ne per pompa montrado de klereco.

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