quinta-feira, 1 de maio de 2014

Brux e o Esperanto


                           
                                     
Sobre a mesa da sala o envelope selado com a patinha de gato.
Brux... Sempre enigmática.
Na mensagem telegráfica a pista:  

                               NOVIDADES.   

Guardei o envelope e fui cuidar de outros afazeres na certeza de que a qualquer momento deixaria tudo para acompanhar a minha velha amiga nas suas aventuras pitorescas. Fui às compras e, quando voltei, novo envelope desta vez preso no mensageiro dos ventos que brinca na moldura da divisória entre a sala e a cozinha.

                              AMANHÃ ÀS 9h NO C.E

Precisava arrumar tudo a partir de agora porque Brux, imprevisível como era, queria tudo para ontem e achei até bom que Insônia me desse uma mãozinha, enquanto eu organizava a bagagem que precisaria levar além do caderno e lápis, indispensáveis para mim, onde quer que eu vá.
Era uma excitação natural que antecedia à chegada de Brux que trazia para mim, a aventura, a história, os sonhos...

Original, criativa, uma revolução no meu cotidiano sem graça e sem grandes perspectivas.

Dia seguinte, nove horas em ponto, lá estava eu em frente ao antigo e charmoso casarão, hoje Centro Esotérico. Lindo!

O prazer dos reencontros! O casal Flor e Colibri, cujo casamento tinha sido realizado por ela mesma; Ariosto, seu gato negro como a noite que a seguia como um cãozinho fiel; Avínia, a corujinha conselheira que, pousada em seu ombro, nas grandes ocasiões emprestava-lhe um ar de sacerdotisa grega, a própria Brux, enigmática e misteriosa como sempre, e eu que crescia em admiração a cada dia pela originalidade e a amorosidade da feiticeira com os seus companheirinhos de estimação que, uma vez adotados por ela, apesar de possuírem características especiais, eram tratados e respeitados em suas condições de animais mesmo e talvez aí estivesse a chave do grande carinho e fidelidade que lhe davam em troca.

Na cozinha ampla com fogão a lenha, cortininha na janela e mesa comprida, a gente permaneceu um bom tempo cada qual a falar de suas lembranças mais queridas, pequenas relíquias guardadas na caixinha da memória.
Brux apenas observava. No momento em que Silêncio, seu convidado de honra chegou, ela aproveitou para falar.

- Obrigada por aceitarem meu convite.
- É sempre um prazer para nós a sua visita, Brux querida, disse Flor, a anfitrã, emocionada.

O Casarão, hoje transformado em Centro Esotérico, tinha sido moradia de Brux durante muitos anos e ficara sob sua administração, quando Brux, após realizar a cerimônia de seu casamento* com um charmoso arquiteto francês, viajou para sua morada na Lua Nova.

- Seus aposentos e nossos corrações estão semprre à sua esperra, Madame! Venha mais vezes. Era o Colibri, eterno amado de Flor cujo sotaque francês não conseguiu perder.

Brux sorriu com o olhar.

- Introduzir o Esperanto no Setor dos Cursos permanentes do C.E é  meu projeto. Andei pesquisando sobre esse idioma e observei que ele tem um quê de magia fascinante! E onde tem magia... eu estou por perto para aprender. Mas proponho uma votação secreta.

E dizendo isso fez surgir diante de todos, graciosos quadradinhos de papel, potinhos de tinha, pincéis variados para o registro de escolha.
Enquanto a votação transcorria, ela foi visitar a sua sala de aula preferida: o quintal do Casarão, onde ouvia e via com prazer, as lições da Natureza, grande mestra de todos nós.

E na mesa do laboratório, quer dizer da cozinha, ficamos todos envolvidos com a responsabilidade da escolha.

Todos votamos.

Ariosto molhou a patinha na tinta e carimbou no papelzinho.
Tenor, o sapinho que adorava cantar, repetiu o gesto do companheiro e a corujinha Avínia, preferiu molhar seu biquinho e deixar sobre o papelito seu carimbo diferente. Uma graça!
Flor escreveu um SIM com uma estrelinha no lugar do pingo do i.
Colibri desenhou um SIM em forma de flor e eu, por minha vez, usei um coração para emoldurar o meu SIM ao Esperanto.
Até o Silêncio votou! molhando o papelzinho no pote de tinta verde.
Não ficando desta forma, papel algum em branco o que significaria NÃO ao projeto.

Brux voltou. Deteve-se na soleira da porta com sua naturalidade silenciosa e ao invés de olhar os papéis, como seria de se esperar, olhou em nossos olhos diretamente e isso, sem a menor pressa.

Todos sustentamos o olhar da feiticeira que, surpreendente, desenhou no ar a frase encantadora:
                    
                   MUITO OBRIGADA PELO VOTO POSITIVO

Mas teve um personagem que ficou com ciúmes do nosso evento e como reação decidiu simplesmente sumir!

Muitas vezes nos entusiasmamos tanto com o vinho servido por Alegria que acabamos nos esquecendo de gente ou seres muito importantes na nossa vida.

Até mesmo Brux que era tão detalhista, que parecia ter sempre tudo sob controle esqueceu-se de convidá-la para a votação.
E agora?

O ruído da porta batendo com força fez com que a alegre reunião fosse interrompida deixando no ar uma preocupação e uma pergunta.
Foi uma correria em todas as direções para averiguação do fato e, ao chegarmos todos juntos no salão de entrada, vimos uma tabuleta com a seguinte mensagem:

                                    INGRATOS

Brux demonstrou um ar de preocupação que eu jamais vira. Levou o polegar e o dedo médio entre as sobrancelhas, semicerrou os olhos, inspirou profundamente buscando o equilíbrio para clarificar a mente e organizar o pensamento. Em seguida aproximou-se do papel tocando-o sem pressa, como a buscar-lhe a vibração ali impressa.

- Continuem a busca, por favor.

Saímos todos em busca da desaparecida. O casarão oferecia muitos esconderijos tanto no interior quanto no exterior e vasculhamos todos os ângulos possíveis. Em vão.

Brux postou-se próximo à porta de entrada, onde o bilhete fora fixado e, como se fosse uma antena buscou aumentar seu campo de percepção.
Seus ouvidos apurados captaram sons abafados de soluços vindos do seu antigo quarto. Por que não pensara nisso antes?

Levitou pela escadaria e abriu a porta deixando seu olhar percorrer o  amplo aposento e pousar como uma águia imponente sobre a arca blindada que era onde ela escondia muito bem escondido, suas frustrações, os problemas ainda não resolvidos, as angústias sentidas, os dardos envenenados das críticas, algumas mágoas e mesmo a raiva, muitas vezes inevitável, ela costumava ocultar ali. E blindou a arca como que a proteger-se daquelas situações e sentimentos tão comuns a todos nós, inclusive a uma bruxa! Blindava a arca para não ser atormentada nem atormentar a quem quer que fosse! Que feiticeira!

Pois foi exatamente ali naquele lugarzinho que a Vassourinha-vetor se escondeu acreditando que Brux não a encontraria. Na verdade, quem se esconde sempre deixa uma pista para ser encontrado e isso não tem mistério algum. E se esse é um fato tão comum aos simples mortais, por que não aos entes encantados?

E porque ali se encontrasse um ente tão querido e indispensável em sua vida ela envolveu a arca com um sentimento de afeto tão intenso que desfez a energia estática que tornava nocivo aquele simples objeto.
Só então a arca foi aberta e ouvimos Brux:

- Como eu poderia ficar sem você, Magrinha? Isso seria o mesmo que parar de trabalhar, de ajudar a quem precisa, interromper o tráfego das minhas viagens e isso eu não pretendo fazer tão cedo.               

A Vassourinha-vetor ergueu-se, olhou para todos nós e depois encarando diretamente nos olhos de sua piloto disse contida:

- Por que você me excluiu da votação?

- Não te excluí. Foi apenas um esquecimento da minha parte. Não mereço desculpas por um ato comum a qualquer pessoa?

- Mas você não é uma pessoa...

- Não?! Sou o que, então?

- Ora, você é uma bruxa!

- E você acha mesmo que as bruxas não são gente?

- Acho.

- O que você quer para acabar com esse amuo todo? Como bruxa, tenho que lembrar a você que paciência não é o meu forte.

- Quero votar também.

Todos nós sorrimos aliviados diante do final daquele episódio que ninguém esperava.
A Vassourinha escolheu a cor laranja, movimentou as palhas num semi-arco e molhou o papel de uma forma que o carimbo parecia um grande sorriso significando mais um SIM na votação proposta pela nossa Brux que cada vez mais fazia parte da nossa vida, dos nossos sonhos, como se fosse da família mesmo.

E o Esperanto? Ah! Esperem só para verem o que essa gente, errr... esse grupo vai aprontar.





4 comentários:

  1. Tudo muito encantador e encantado, Dirce! Mas ficará perfeito se você traduzir essas narrativas mágicas para o Esperanto e costurá-las num livro de contos. Parabéns!

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  2. Koketa, amuza, delikata, subtila. Iom post iom vi kreas galerion da figuron en mondo de fantazio. Ni atendas la proksiman...

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  3. Oi Dirce, amo a Brux. Ela é encantadora, assim como você.
    endosso a sugestão da Nazaré.
    Bjs

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  4. Olá, Dirce, adorei essa historinha! Ela prende nossa atenção. Quem sabe você ainda não vai publicar um livro de historinhas infantis? Bjs

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