terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Chico Riscado

 
 


 
Quando o Governo lançou o Projeto MOBRAL, eu, no afã de trabalhar, arregimentei um grupo de funcionários no extinto Matadouro Municipal de Santa Cruz, onde toda noite nos reuníamos na difícil tarefa da alfabetização.

Cada um dos alunos apresentava uma característica marcante dentro de suas vivências e experiências de vida como o mais velho do grupo, que, olhando para mim tristemente, disse que o lápis pesava muito mais entre seus dedos calejados e endurecidos que o cabo da enxada manejada por ele anos a fio, desde a infância longínqua...

Mas um deles, o seu Francisco, mereceu o destaque da memória por sua prodigiosa capacidade de contar “causos” que nunca se repetiam.                         

Uma noite, devido a uma pane na rede elétrica, nós nos sentamos do lado de fora para aguardar o retorno da energia. E ali, sob o grande lampião da lua cheia, ouvimos a narrativa entusiasmada do nosso personagem.

- A senhora já ouviu falar em corpo fechado, professora?

- Já sim, seu Francisco.

- Pois o meu avô, o finado Chico Riscado - que Deus o tenha! - tinha o corpo tão bem fechado, que nem bala atravessava!

 - Eeeeita! – exclamou Belmiro, o grande gozador da turma.

 - Um dia, aqui mesmo no largo em frente, ele foi cercado pelos cabras da polícia porque se deitou com uma rapariga e o pai dela quando soube, mandou prender. Como ele não obedeceu à voz de prisão, os cabras mandaram bala e acabou que eles mesmo saíram em desabalada carreira quando viram meu avô aparando as balas na mão, bem assim, ó!
 
E levantava a mão bem alto, a evocar a lembrança do avô - seu grande herói - naturalmente.

De outra vez foi ao cemitério – e se benzia – à meia noite pra fazer um “trabaio” e como o portão estivesse fechado e com corrente grossa, ele nem piscou:

- Abre, portão! É Chico Riscado que tá mandando!

- E o que aconteceu?

- E apois... não é que o portão abriu de fora a fora?

- Essa é de lascar! – disse Belmiro, num deboche incontido.

A gente ria muito, vendo seu Francisco contar aquilo tudo devido a  sua voz estridente e as expressões que emprestava às narrativas.

Baixinho, suspendia o corpo e estufava o peito, gesticulava muito e dependendo do “causo”, arrematava com uma sonora risada e um tapa bem forte na própria perna.

 - Tem mais alguma aí, seu Francisco?

- Tem e essa eu tava lá. Era pequeno ainda, mas lembro como fosse hoje... Chico Riscado adorava uma pescaria e dependendo do dia ia ele mais eu pra beira do rio e a gente ficava horas esperando o beliscão dos grandes porque os pequenos ele devolvia pra água. Barulho deixava ele muito bravo porque espantava os peixes.

Tava ele lá concentrado, sentado no barranco, olhando firme pra água quando sentiu alguma coisa bater no seu ombro esquerdo.
Pensando que era eu, ele olhou e viu! – e dizia, colocando o indicador sob a pálpebra inferior para dar mais ênfase ao fato.

- Viu o quê?

- Pois não era uma cobra, professora? A senhora pode até nem acreditar, mas a danada passou por trás dele, bateu com a ponta do rabo no ombro esquerdo enquanto a cabeça surgia do lado direito bem pertinho da cesta com o pescado.

- Boa tarde, Chico Riscado. – disse ela com sua voz de serpente – pode me dar uns peixinhossss?

- Eita! Uma cobra falante e educada desse jeito? Essa doeu!

 - Contenha-se, Belmiro. E seu avô, o que fez?

 - Ói, ele não só deu uns dois peixinhos – pequenos - só uns 5 kilos mais ou menos - pra ela como conversou um bom tempo com a bicha, prometendo voltar no outro dia pra contar mais “causos”.

- Olha que eu já ouvi muita mentira nessa minha longa existência  mas essa... disse uma voz que vinha do alto e, quando nós nos demos conta, não era a própria Lua quem falava?

Redonda e linda como nunca, ria-se com gosto das histórias de Chico Riscado Neto, que se tivesse se alfabetizado certamente seria um grande escritor e dos “bão!”

 


 

2 comentários:

  1. Muito gostoso de ler esse seu conto, Dirce! Simplicidade e naturalidade que estavam fazendo falta...

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  2. Bonege! Kia bedauro, ke niaj samideanoj, kiuj ne posedas la portugalan lingvon, ne povas ghui tiajn charmajhojn!

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