Quando o Governo lançou o Projeto
MOBRAL, eu, no afã de trabalhar, arregimentei um grupo de funcionários no
extinto Matadouro Municipal de Santa Cruz, onde toda noite nos reuníamos na
difícil tarefa da alfabetização.
Cada um dos alunos apresentava uma
característica marcante dentro de suas vivências e experiências de vida como o
mais velho do grupo, que, olhando para mim tristemente, disse que o lápis
pesava muito mais entre seus dedos calejados e endurecidos que o cabo da enxada
manejada por ele anos a fio, desde a infância longínqua...
Mas um deles, o seu Francisco,
mereceu o destaque da memória por sua prodigiosa capacidade de contar “causos”
que nunca se
repetiam.
Uma noite, devido a uma pane na rede
elétrica, nós nos sentamos do lado de fora para aguardar o retorno da energia.
E ali, sob o grande lampião da lua cheia, ouvimos a narrativa entusiasmada do
nosso personagem.
- A senhora já ouviu falar em corpo
fechado, professora?
- Já sim, seu Francisco.
- Pois o meu avô, o finado Chico
Riscado - que Deus o tenha! - tinha o corpo tão bem fechado, que nem bala
atravessava!
- Eeeeita! – exclamou Belmiro, o
grande gozador da turma.
- Um dia, aqui mesmo no largo em
frente, ele foi cercado pelos cabras da polícia porque se deitou com uma
rapariga e o pai dela quando soube, mandou prender. Como ele não obedeceu à voz
de prisão, os cabras mandaram bala e acabou que eles mesmo saíram em desabalada
carreira quando viram meu avô aparando as balas na mão, bem assim, ó!
E levantava a mão bem alto, a evocar
a lembrança do avô - seu grande herói - naturalmente.
De outra vez foi ao cemitério – e se
benzia – à meia noite pra fazer um “trabaio” e como o portão estivesse fechado
e com corrente grossa, ele nem piscou:
- Abre, portão! É Chico Riscado que
tá mandando!
- E o que aconteceu?
- E apois... não é que o portão abriu
de fora a fora?
- Essa é de lascar! – disse Belmiro,
num deboche incontido.
A gente ria muito, vendo seu
Francisco contar aquilo tudo devido a sua voz estridente e as expressões
que emprestava às narrativas.
Baixinho, suspendia o corpo e
estufava o peito, gesticulava muito e dependendo do “causo”, arrematava com uma
sonora risada e um tapa bem forte na própria perna.
- Tem mais alguma aí, seu Francisco?
- Tem e essa eu tava lá. Era pequeno ainda, mas lembro como fosse hoje... Chico Riscado adorava uma pescaria e dependendo do dia ia ele mais eu pra beira do rio e a gente ficava horas esperando o beliscão dos grandes porque os pequenos ele devolvia pra água. Barulho deixava ele muito bravo porque espantava os peixes.
Tava ele lá concentrado, sentado no
barranco, olhando firme pra água quando sentiu alguma coisa bater no seu ombro
esquerdo.
Pensando que era eu, ele olhou e viu!
– e dizia, colocando o indicador sob a pálpebra inferior para dar mais ênfase
ao fato.
- Viu o quê?
- Pois não era uma cobra, professora?
A senhora pode até nem acreditar, mas a danada passou por trás dele, bateu com
a ponta do rabo no ombro esquerdo enquanto a cabeça surgia do lado direito bem
pertinho da cesta com o pescado.
- Boa tarde, Chico Riscado. – disse
ela com sua voz de serpente – pode me dar uns peixinhossss?
- Eita! Uma cobra falante e educada
desse jeito? Essa doeu!
- Contenha-se, Belmiro. E seu avô, o
que fez?
- Ói, ele não só deu uns dois
peixinhos – pequenos - só uns 5 kilos mais ou menos - pra ela como conversou um
bom tempo com a bicha, prometendo voltar no outro dia pra contar mais “causos”.
- Olha que eu já ouvi muita mentira
nessa minha longa existência mas essa... disse uma voz que vinha do alto
e, quando nós nos demos conta, não era a própria Lua quem falava?
Redonda e linda como nunca, ria-se
com gosto das histórias de Chico Riscado Neto, que se tivesse se alfabetizado
certamente seria um grande escritor e dos “bão!”
Muito gostoso de ler esse seu conto, Dirce! Simplicidade e naturalidade que estavam fazendo falta...
ResponderExcluirBonege! Kia bedauro, ke niaj samideanoj, kiuj ne posedas la portugalan lingvon, ne povas ghui tiajn charmajhojn!
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