segunda-feira, 28 de março de 2016

Nenzinha


- Sabia que teu pai já tomou a bênção a maluco?
Alfinetou de forma sagaz, minha mãe, no intuito de ridicularizar a figura paterna.
- Conta aí, pai.
E papai, sem se fazer de rogado, puxa a cadeira, cruza a perna, acende um cigarro, e bom narrador que sempre foi, sem pressa, desfia o seu rosário de lembranças.
“ Mamãe tinha por mania mandar os filhos fazer recado pra ela. Fazer recado era levar e trazer notícias de alguém. E nunca faltava a merenda, que ela fazia questão de mandar.
Dessa vez era para uma comadre sua, que morava mais distante e pra ir num pé e voltar no outro, como rezava o costume, a gente era obrigado a ir a cavalo ou de condução.
Quituteira de mão cheia, mamãe preparava tudo com muito gosto, fazia o embrulho bem apertado e finalizava com uma toalhinha de prato quadriculada, que era pra ficar bem atado na cela, sem risco de a gente deixar cair.
Naquela época, lá pelos meus doze, treze anos mais ou menos, o povo contava que por aquelas bandas vagava Nenzinha, uma moça que perdera a razão depois da morte de seu único filho.
Eu, depois de ouvir as muitas recomendações e rezas de mamãe, montei o cavalo e parti pra casa de madrinha Bertha, que, por acaso, era madrinha de meu irmão caçula, mas em casa, os padrinhos de um eram de todos. E éramos dez irmãos...
A estrada, em certos trechos, era ornamentada nas laterais por cercas vivas feitas por um tipo de planta que se trançava e dessa forma impedia a fuga de alguns animais das fazendas vizinhas e também o olhar curioso dos que seguiam caminho afora.
Antes da curva que indicava o limite da casa de madrinha, feito um corisco, veio o pensamento que eu, inutilmente, tentava evitar:
Já pensou se Nenzinha aparece por aqui? Eu aqui, sozinho, faço o quê?
Dizem que pensar atrai tudo que a gente não quer e logo depois da curva, feito uma assombração, um bicho acuado, com um grito de arrepiar até a alma, surge a figura temida!
Os cabelos eriçados, a roupa maior que o corpo, a face maltratada, mãos e unhas enegrecidas pela poeira da estrada, fez o cavalo refugar e eu, impelido pelo medo de cair da montaria, apeei às pressas e, frente a frente com Nenzinha, o coração disparado pelo susto, meio que nem sem saber como, a voz saindo mais do estômago que da garganta, gritei:
- Abeeeença!
Ela sorriu e se foi. Desapareceu mato adentro e eu segui o resto do caminho a pé, puxando a montaria pela rédea, porque faltou força pra subir no lombo do animal.”
Assim era meu pai. Uma figura ímpar. Um proseador de primeira. Que talvez, sem saber, tenha deixado em mim o gosto da prosa e da cantoria.



4 comentários:

  1. Suka, natura rakonto. Oni preskau auskultas la vochon de la trankvila rakontanto!

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  2. Dirce, por um momento eu me vi sentada vendo e ouvindo o "pai".
    Simplesmente maravilhoso !

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