Meu avô materno adorava contar histórias e uma delas, a
que mais prendia a atenção e a respiração, era a de João de Calais, um jovem
que saiu pelo mundo viajando, sabe-se lá a procura de quê.
De pouso em pouso, chegou ao Castelo mais afamado da
região, pelos muitos fantasmas que ali habitavam.
Muito cansado, subiu para o seu quarto e após deitar-se
na cama enorme e aconchegante, passeou o olhar pelo ambiente e apagou a luz
para dormir.
Mas...
- Ai! Ai! Eu caio... eu caio...
João levantou-se e, espírito investigativo, começou a
procurar a direção da voz.
- Eu caio...
- Ora, meu amigo, pare de cair então.
- Como?!
- Pare de cair e entre, disse ele abrindo a janela.
- Mas isso não está certo!
- O que não está certo, meu caro?
- Você não ter medo de mim!
- E por que deveria?
- Eu sou um fantasma!
- Muito prazer, senhor fantasma. Eu sou João.
O fantasma, meio desnorteado, ficou sem saber o que
dizer.
Por incrível que pareça, ele percebeu numa fração de
segundos, que ele só sabia fazer a mesma coisa durante anos, séculos talvez;
ele só se repetia, e concluiu, tristemente, que perdera algo precioso demais em
sua vida: o tempo!
Começou a chorar.
- Ora, meu caro, chorar não resolve problemas. Pode
aliviar o peso da carga, mas não resolve. Vamos pensar juntos.
- Mas... mas...
- Mas o que, meu amigo?
- Nunca ninguém me tratou assim antes! Quem é o senhor?
- Eu sou o João. E você?
- Sabe que eu nem sei meu nome mais? Virei o Fantasma
do quarto escarlate...
- Então vou sugerir um nome pra você: Henrique! Que
tal?
- Henrique?! É nome de nobre por aqui.
- Então ficamos assim, você será Henrique, até lembrar-se
do seu nome verdadeiro, concorda?
- Sim, obrigado. Mas e o senhor, de onde vem?
- De longe, muito longe...
- A procura de que? De quem?
- De mim mesmo.
- Eu não sei quem sou, e o senhor está a procura de si
mesmo...
- Não me trate de senhor. Vejo que você, Henrique, está
recuperando a sua capacidade crítica, o que é muito bom. Vamos comer alguma
coisa?
- Comer?!
- Sim. Eu sempre tenho em meu alforje um bom pedaço de
bolo ou de pão, que procuro guardar para os momentos de emergência.
- Mas eu não me lembro se fantasmas se alimentam, João.
- Lembre-se do tempo que você não era fantasma, pronto!
Vê se dá certo.
Henrique sorriu e sentiu-se bem com aquele sentimento
de alegria, que quase não se lembrava mais como era...
Sentiu o aroma do bolo e percebeu que salivava!
Pensando bem, essa era a segunda reação humana que produzia! Primeiro, as
lágrimas e agora a saliva...
Olhou para João e sentiu vontade de abraçá-lo, mas
conteve o seu ímpeto.
Provou um pequeno pedaço do bolo e ao sentir o sabor
tão doce, sorriu de prazer.
Quanta coisa uma pessoa bem intencionada é capaz de
fazer por alguém, ainda que esse alguém seja um fantasma, sem noção de tempo,
sem saber fazer outra coisa na vida, que não seja assustar, intimidar. Que
perda de tempo, não é mesmo?
- Bem, João, eu já abusei muito da sua hospitalidade.
Agora eu preciso ir embora.
- Mas você tem para onde ir?
- Eu moro do lado de fora da janela.
- Enquanto eu estiver por aqui, você pode se acomodar
onde quiser. Olha, aqui tem um sofá bem confortável. As cobertas estão ali na
cômoda.
- Sabe, João, eu não me lembro de ter sido tratado
assim, com tanta humanidade, há muito tempo... Nunca vou poder pagar esse
favor.
- Não faço o que faço pelos outros pensando em pagamentos
de volta. Faço simplesmente porque acho que é meu dever ajudar quem precisa.
Talvez um dia eu também precise da ajuda de alguém, não é mesmo?
- Veja como é a vida... eu precisei morrer primeiro
para aprender depois e justamente com alguém que eu deveria assustar, apavorar,
bater em retirada e no entanto...
- Ora, meu caro, um dos fatores que geram a violência
entre os homens, é o medo. O medo tem dois lados. Um intimida e vitimiza o
outro se acovarda e se subordina e nessa relação desigual, a semente da guerra
se reproduz e em escala cada vez maior.
- E você acredita que um dia o mundo melhore?
- Só depende de nós mesmos. Afinal, o que é do mundo
sem as pessoas? Temos notícias de muitos mundos gravitando em torno de nós, mas
onde estão os habitantes? Onde as árvores, as montanhas, as cachoeiras, os
animais, as cidades?
- Nunca tinha pensado nisso...
- É, mas é bom começar a pensar, viu? Você acredita em
Deus, Henrique?
- Sabe que essa é uma pergunta que eu nunca me fiz? Eu
sempre acreditei muito em mim mesmo.
- Então já tenho a resposta. Boa noite!
João dormiu profundamente, mas o nosso fantasminha
querido ficou de plantão, pensando... pensando...
Um conto de viés educativo, sem perder a leveza e o encanto,
ResponderExcluirpor meio da desconstrução das ordinárias narrativas de fantasmas.
Samtempe amuza kaj pensiga. Tre bona rakonto!
ResponderExcluirMi konkludas la jeno, ni devas koni niajn fantomojn, kaj provi plibonigi ĝin aŭ Lin. Ĉu la fantomo apartenas al mi, do mi povas diri lin. Ĉar li vere ekzistas en mia menso....Dankon Dirce!
ResponderExcluirMuito bom....polissemia espiritual. Clarisse Lispector do Espiritismo.
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