O vento forte que soprava na direção contrária fazia
com que os passos de Dom Ferdinando ficassem mais lentos. Ele a cada minuto
consultava o recorte de jornal já amassado de tanto passar da mão para o bolso
do paletó, já bem fora de moda, mas que ele fazia questão de manter e usar como
se aquela velha peça lhe garantisse a nobreza que sempre afirmara possuir, mas
a tal linhagem era bastante duvidosa.
Dom Ferdinando, como se intitulava, estava à
procura de uma casa para alugar.
A rua parecia bem tranquila, mas o diacho do número
não chegava nunca!
Quase no final da antiga alameda, bem ali, entre
muros descascados, escondia-se o número 1906, numa construção no fundo do
terreno.
Na ausência de campainha, bateu palmas. Odiava
fazer isso!
Após alguns arrastados minutos surgiu alguém para
recepcioná-lo.
O personagem parecia-se com a casa...
Roupas gastas, barba por fazer, uns óculos quebrados
que ele tentava equilibrar sobre o nariz, sem grandes resultados. Procurando ajustar
o foco de visão, alteou a voz fanhosa:
- Que é?
- É o seu novo inquilino.
- Quem?!
- Seu inquilinooo.
- Ah! Vou chamar o “seu” Lourival.
Virou as costas, deixando D. Ferdinando furioso sob
uma garoa fina e aquele maldito vento.
Quando já se decidia a ir embora aparece o “seu”
Lourival, o suposto senhorio da casa estranha.
Os cabelos em desalinho, a roupa amarrotada no
corpo demonstravam que ele estava dormindo vestido como se fosse sair. Seu
aspecto desleixado. Um gato a segui-lo e a tentativa de parecer gentil,
deixou-o com uma das mãos estendida para cumprimentar o recém-chegado, enquanto
a outra tentava abrir a fechadura emperrada do portão.
Dom Ferdinando estava deveras enojado daquele
quadro burlesco, mas o preço do aluguel tentava-o a ficar.
- Boa tarde! Desculpe certa desordem, mas homem
solteiro não tem muito tempo, nem jeito, para certas arrumações mais próprias
de mulher...
- Posso ver a casa?
- Ah, claro! Muito prazer. Lourival.
- Dom Ferdinando.
- Já ouvi falar do senhor.
- Bem ou mal?
- Vamos entrando... fez-se o outro de desentendido.
D. Ferdinando detestava gatos e como parece que
tudo o que não se gosta nos vem de encontro, lá estava o almofadinha tentando
esquivar-se do animal, que insistia em roçar-se em suas pernas. Aaarrrg...
Tudo era desagradável e cheirava a poeira e mofo
naquele lugar.
- Qual é mesmo o preço do aluguel?
- R$ 600,00
- Está alto.
- Está no preço do mercado.
- R$ 500,00?
- R$ 550,00.
Nisso, estranhos ruídos vieram do interior da casa,
interrompendo a negociata dos personagens que pareciam medirem-se, sondarem-se
o tempo todo.
- Que é isso? Tem morador na casa? No anúncio diz
que ela está vazia!
- Ah, não se incomode com isso. São os fantasmas.
- Fantasmas?!
- É. Os antigos inquilinos gostavam tanto do lugar,
que nem depois de mortos quiseram sair. O que é a vida, não?
- Bem, esse preço é com os fantasmas, já entendi. E
sem eles?
- Não posso expulsá-los. Aliás, nem saberia como!
Mas, afinal, o senhor tem tanto medo de fantasmas assim?
- Não.
- Então, por que não os quer por perto?
- Ah, eles são muito barulhentos e um escritor
precisa de silêncio para trabalhar.
- R$550,00?
- Sem chance.
- R$ 500,00
- Fecho em R$450,00.
- Sem direito a água encanada. Só de poço.
- O quê?! O senhor merece ser denunciado por
anúncio falso.
- E o senhor por falsa identidade.
- Até nunca mais!
- Até nunca mais, Fernando Contrabando!
- Lourival Lalau...
E saindo dali o quanto antes e mais rápido que
pudesse, já que tinha o vento agora a seu favor, nem percebeu que o velho
sovina, sabe-se lá como, roubou-lhe o antigo relógio de algibeira que ele fazia
questão de dizer ter herdado do avô, um lorde inglês, que morrera num
naufrágio, mas que na verdade conseguira numa carga de contrabando no cais do
porto, cujo chefe portuário era seu velho conhecido e devia-lhe alguns
favores...
Assim como as almas nobres se atraem as não tão
nobres também, corroborando o velho ditado que diz: semelhante atrai semelhante
em igualdade de proporções.
Saborosa narrativa que me lembra muito a de João do Rio, um dos principais narradores da sociedade carioca do século XX..
ResponderExcluirDirce querida, continue! Você é a minha contista contemporânea preferida!
Muito bom!
ResponderExcluirLa epizodo estas "serioze amuza" kaj tre interesa. Tute originala! Mi aparte shatis la scenon, en kiu kato sekvas la sinjoron... Oni "vidas" la scenon perfekte.
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