sábado, 28 de setembro de 2013

O Aluguel



                                  

O vento forte que soprava na direção contrária fazia com que os passos de Dom Ferdinando ficassem mais lentos. Ele a cada minuto consultava o recorte de jornal já amassado de tanto passar da mão para o bolso do paletó, já bem fora de moda, mas que ele fazia questão de manter e usar como se aquela velha peça lhe garantisse a nobreza que sempre afirmara possuir, mas a tal linhagem era bastante duvidosa.
Dom Ferdinando, como se intitulava, estava à procura de uma casa para alugar.
A rua parecia bem tranquila, mas o diacho do número não chegava nunca!
Quase no final da antiga alameda, bem ali, entre muros descascados, escondia-se o número 1906, numa construção no fundo do terreno.
Na ausência de campainha, bateu palmas. Odiava fazer isso!
Após alguns arrastados minutos surgiu alguém para recepcioná-lo.
O personagem parecia-se com a casa...
Roupas gastas, barba por fazer, uns óculos quebrados que ele tentava equilibrar sobre o nariz, sem grandes resultados. Procurando ajustar o foco de visão, alteou a voz fanhosa:
- Que é?
- É o seu novo inquilino.
- Quem?!
- Seu inquilinooo.
- Ah! Vou chamar o “seu” Lourival.
Virou as costas, deixando D. Ferdinando furioso sob uma garoa fina e aquele maldito vento.
Quando já se decidia a ir embora aparece o “seu” Lourival, o suposto senhorio da casa estranha.
Os cabelos em desalinho, a roupa amarrotada no corpo demonstravam que ele estava dormindo vestido como se fosse sair. Seu aspecto desleixado. Um gato a segui-lo e a tentativa de parecer gentil, deixou-o com uma das mãos estendida para cumprimentar o recém-chegado, enquanto a outra tentava abrir a fechadura emperrada do portão.
Dom Ferdinando estava deveras enojado daquele quadro burlesco, mas o preço do aluguel tentava-o a ficar.
- Boa tarde! Desculpe certa desordem, mas homem solteiro não tem muito tempo, nem jeito, para certas arrumações mais próprias de mulher...
- Posso ver a casa?
- Ah, claro! Muito prazer. Lourival.
- Dom Ferdinando.
- Já ouvi falar do senhor.
- Bem ou mal?
- Vamos entrando... fez-se o outro de desentendido.
D. Ferdinando detestava gatos e como parece que tudo o que não se gosta nos vem de encontro, lá estava o almofadinha tentando esquivar-se do animal, que insistia em roçar-se em suas pernas. Aaarrrg...
Tudo era desagradável e cheirava a poeira e mofo naquele lugar.
- Qual é mesmo o preço do aluguel?
- R$ 600,00
- Está alto.
- Está no preço do mercado.
- R$ 500,00?
- R$ 550,00.
Nisso, estranhos ruídos vieram do interior da casa, interrompendo a negociata dos personagens que pareciam medirem-se, sondarem-se o tempo todo.
- Que é isso? Tem morador na casa? No anúncio diz que ela está vazia!
- Ah, não se incomode com isso. São os fantasmas.
- Fantasmas?!
- É. Os antigos inquilinos gostavam tanto do lugar, que nem depois de mortos quiseram sair. O que é a vida, não?
- Bem, esse preço é com os fantasmas, já entendi. E sem eles?
- Não posso expulsá-los. Aliás, nem saberia como! Mas, afinal, o senhor tem tanto medo de fantasmas assim?
 - Não.
- Então, por que não os quer por perto?
- Ah, eles são muito barulhentos e um escritor precisa de silêncio para trabalhar.
- R$550,00?
- Sem chance.
- R$ 500,00
- Fecho em R$450,00.
- Sem direito a água encanada. Só de poço.
- O quê?! O senhor merece ser denunciado por anúncio falso.
- E o senhor por falsa identidade.
- Até nunca mais!
- Até nunca mais, Fernando Contrabando!
- Lourival Lalau...
E saindo dali o quanto antes e mais rápido que pudesse, já que tinha o vento agora a seu favor, nem percebeu que o velho sovina, sabe-se lá como, roubou-lhe o antigo relógio de algibeira que ele fazia questão de dizer ter herdado do avô, um lorde inglês, que morrera num naufrágio, mas que na verdade conseguira numa carga de contrabando no cais do porto, cujo chefe portuário era seu velho conhecido e devia-lhe alguns favores...
Assim como as almas nobres se atraem as não tão nobres também, corroborando o velho ditado que diz: semelhante atrai semelhante em igualdade de proporções.

                                                                                                          


3 comentários:

  1. Saborosa narrativa que me lembra muito a de João do Rio, um dos principais narradores da sociedade carioca do século XX..
    Dirce querida, continue! Você é a minha contista contemporânea preferida!

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  2. La epizodo estas "serioze amuza" kaj tre interesa. Tute originala! Mi aparte shatis la scenon, en kiu kato sekvas la sinjoron... Oni "vidas" la scenon perfekte.

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