Agosto, meados de 60.
Meu avô volta da lida – era como ele chamava o trabalho
na roça.
Com seu jeito quieto, homem de muita ação e poucas
palavras, entrega o cavalo ao Adilson, empregado seu de muitos anos, “cria da casa”,
no dizer local, que ali vivera desde a infância, e o compreendia ao mínimo
gesto ou olhar.
Entra, banha-se, janta, conversa um pouco com minha
avó, senta-se em sua cadeira preferida: a de balanço, em frente à janela da
sala; mais algumas palavras, queixa-se de um certo mal estar e pede à minha avó
que chame o Francisco (pós nome de Adilson) para ajudá-lo a ir deitar-se.
Era um homem alto e forte e seria difícil para minha
avó, pequenina que era transportá-lo em caso de “precisão” – sua definição de necessidade.
Deitou-se, passeou o olhar por todos os ângulos do
quarto, pronunciou o nome de todos os filhos e netos numa espécie de melodia a
preencher-lhe a existência e morreu.
Minha avó, atônita, grita pela filha caçula e manda
Adilson correr a chamar os meninos que tinham por costume àquelas horas, irem
para a venda de Manoel Miranda prosear um pouco, jogar sinuca, beber umas e
outras, mexer com as mulheres ou visitar as namoradas que moravam por perto.
Adilson nem encilha o cavalo. Joga apenas o freio na
cabeça do animal e em pelo, voa estrada à fora, rápido como um corisco, perdido
em lembranças, afogado em lágrimas que corriam desenfreadas como o galope de
Castaninho, o cavalo preferido de vovô.
Após alguns metros, chega ao destino, pula do cavalo e
de pé, sem conseguir articular uma palavra, aperta aflitivamente o chapéu
entre as mãos.
Estanca-se o riso e a pilhéria. Alguém desliga o rádio
de pilhas dando lugar à música imperiosa do silêncio.
Impressionante o silêncio que a morte nos impõe...
- Foi mamãe?! Pergunta um dos filhos.
Adilson sacode a cabeça com um não muito lento.
- Zila? Pergunta outro.
Novo aceno negativo.
- Papai...
E desta vez o sim sem palavras, como se não desejasse
interromper a melodia dolorosa do silêncio.
Alguém toma um dos
carros e corre até a cidade para informar aos outros irmãos que lá residiam, o
triste acontecimento.
E nós, que nessa
época morávamos muito distante dali, no sul de Minas Gerais, só recebemos o
telegrama um dia depois, justo num momento de festa quando meu pai dedilhava ao
violão uma música de época, acompanhado pelos convidados.
E o silêncio nos
buscou também.
O tempo, esse
corcel indômito e inquieto, continuou sua corrida, e no seu galope carregou
muita gente com ele. Os anos passaram, chegaram-me os filhos, os primeiros
cabelos brancos, mas lembro-me de tudo isso narrado de modo contido, baixinho,
como se não quisesse incomodar o sono dos mortos, por minha avó, em seus melancólicos
serões de saudade.
Lembro-me tão bem,
como se o tempo não tivesse passado para mim, como se fosse ontem...
Senteme revivantaj rememoroj. La soleno de la morto...
ResponderExcluirDelicado retrato da saudade, no relicário do coração!
ResponderExcluirQue beleza, como sempre, Dirce! Parabéns!
ResponderExcluirLembranças que hoje você nos presenteia em forma de contos. Obrigada Dirce, por dividir conosco este momento.
ResponderExcluirQuerida Dirce,
ResponderExcluirVocê tem o dom de nos transportar para lugares onde jamais estivemos. Parece que vivi toda esta situação. Parece que realmente estive lá.
Belíssimo, como sempre !
Beijos.