terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Relicários



Agosto, meados de 60.
Meu avô volta da lida – era como ele chamava o trabalho na roça.
Com seu jeito quieto, homem de muita ação e poucas palavras, entrega o cavalo ao Adilson, empregado seu de muitos anos, “cria da casa”, no dizer local, que ali vivera desde a infância, e o compreendia ao mínimo gesto ou olhar.
Entra, banha-se, janta, conversa um pouco com minha avó, senta-se em sua cadeira preferida: a de balanço, em frente à janela da sala; mais algumas palavras, queixa-se de um certo mal estar e pede à minha avó que chame o Francisco (pós nome de Adilson) para ajudá-lo a ir deitar-se.
Era um homem alto e forte e seria difícil para minha avó, pequenina que era transportá-lo em caso de “precisão” – sua definição de necessidade.
Deitou-se, passeou o olhar por todos os ângulos do quarto, pronunciou o nome de todos os filhos e netos numa espécie de melodia a preencher-lhe a existência e morreu.
Minha avó, atônita, grita pela filha caçula e manda Adilson correr a chamar os meninos que tinham por costume àquelas horas, irem para a venda de Manoel Miranda prosear um pouco, jogar sinuca, beber umas e outras, mexer com as mulheres ou visitar as namoradas que moravam por perto.
Adilson nem encilha o cavalo. Joga apenas o freio na cabeça do animal e em pelo, voa estrada à fora, rápido como um corisco, perdido em lembranças, afogado em lágrimas que corriam desenfreadas como o galope de Castaninho, o cavalo preferido de vovô.
Após alguns metros, chega ao destino, pula do cavalo e de pé, sem conseguir articular uma palavra, aperta aflitivamente o chapéu entre as mãos. 
Estanca-se o riso e a pilhéria. Alguém desliga o rádio de pilhas dando lugar à música imperiosa do silêncio.
Impressionante o silêncio que a morte nos impõe...
 - Foi mamãe?! Pergunta um dos filhos.
Adilson sacode a cabeça com um não muito lento.
- Zila? Pergunta outro.
Novo aceno negativo.
- Papai...
E desta vez o sim sem palavras, como se não desejasse interromper a melodia dolorosa do silêncio.
Alguém toma um dos carros e corre até a cidade para informar aos outros irmãos que lá residiam, o triste acontecimento.
E nós, que nessa época morávamos muito distante dali, no sul de Minas Gerais, só recebemos o telegrama um dia depois, justo num momento de festa quando meu pai dedilhava ao violão uma música de época, acompanhado pelos convidados.
E o silêncio nos buscou também.
O tempo, esse corcel indômito e inquieto, continuou sua corrida, e no seu galope carregou muita gente com ele. Os anos passaram, chegaram-me os filhos, os primeiros cabelos brancos, mas lembro-me de tudo isso narrado de modo contido, baixinho, como se não quisesse incomodar o sono dos mortos, por minha avó, em seus melancólicos serões de saudade.

Lembro-me tão bem, como se o tempo não tivesse passado para mim, como se fosse ontem... 

5 comentários:

  1. Senteme revivantaj rememoroj. La soleno de la morto...

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  2. Delicado retrato da saudade, no relicário do coração!

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  3. Que beleza, como sempre, Dirce! Parabéns!

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  4. Lembranças que hoje você nos presenteia em forma de contos. Obrigada Dirce, por dividir conosco este momento.

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  5. Querida Dirce,
    Você tem o dom de nos transportar para lugares onde jamais estivemos. Parece que vivi toda esta situação. Parece que realmente estive lá.
    Belíssimo, como sempre !
    Beijos.

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